Todos os nossos distúrbios hoje têm nomes e classificações. Todos os nossos comportamentos dentro ou fora da norma social, todos dentro da natureza humana, agora são síndromes tratáveis ou não tratáveis. Não condeno, até gosto. Hoje em dia não sou mais neurótica, apenas mais uma com um déficit de atenção leve, ou uma Devaneio Excessivo. Conheciam essa?
Eu sonho acordada demais. Muito mesmo. Não afeta minha vida necessariamente, mas queria saber se isso era normal ou se eu devia procurar ajuda psicológica (nunca farei). Assim, consultei o especialista em autodiagnósticos: Dr. Google. E ele me forneceu exatamente o que eu procurava: um diagnóstico pra chamar de meu, e ainda disse que pode ou não ser sério e perigoso, dependendo do quanto isso afeta sua vida (não me afeta em nada).
Resolvi chamar esses Devaneios, que pra mim não são tão Excessivos assim, de Devaneiosinhos Diários. Primeiro porque eles não são tão sérios para mim, e portanto não podem ser levados muito a sério, e segundo porque me lembra alguma invenção de um roteiro da Fernanda Young e do Alexandre Machado e assim toda vez que penso o termo imagino sendo proferido por Débora Bloch ou Lucy Ramos, como um Mini Terremotinho ou uma Disputinha. Então, quando vocês lerem Devaneiosinhos peço que o façam na voz de Fernanda Torres.
Eu sou neurótica. Não escondo nem nunca escondi de ninguém. Venho de uma longa dinastia de neuróticos, depressivos e levemente pirados num geral. Tenho até um certo orgulho das minhas neuroses. Até dizer que sou neurótica não me envergonha. É uma palavra que corre na língua. Neu-ró-ti-ca. Segundo a minha fiel Wikipedia, um neurótico é quem sofre de neurose, e uma neurose é qualquer distúrbio mental. O que quer dizer que no século XXI 80% da população é neurótica (estatísticas puramente inventadas).
Mas hoje em dia ninguém mais é neurótico. As pessoas até fogem desse termo. Somos ansiosos, depressivos, transtornados. Não mais neuróticos, o que pessoalmente acho uma pena. Adoro esse termo guarda chuva pra denominar o motivo de às vezes ter certos comportamentos irracionais que sei que são irracionais. Por isso mesmo sei que sou neurótica e não psicótica. O louco não sabe que é louco, dizia a minha vó, e daí sempre tirei a lógica de que se eu sei que sou um pouquinho louca isso quer dizer que não sou louca; ou pelo menos não estou ultrapassando a linha entre neurose e psicose, então tá tudo bem.
Acho que penso demais. Seria esse também um dos sintomas das minhas neuroses? Tem um primo (chato) que desde muito pequena me chama de Maria Tagarela, pois eu não falo muito (com ele). E mesmo assim ninguém nunca me disse que eu penso demais. Será que interpretam meu silêncio como falta de pensamento, quando na verdade é o oposto? Com o tempo descobri que é assim para a maioria das pessoas "quietas" que conheço: elas não falam muito não porque não tem muito a dizer, mas sim porque tem coisas demais pra dizer e no fim acabam não dizendo nada.

Finalmente, sobre devaneiosinhos:
Três pessoas diferentes que eu conheço simplesmente largaram tudo e mudaram de cidade para ir morar com homens que mal conheciam. Os 3 casamentos ainda estão em pé depois de alguns anos. Coloquei em numeral para entendimento de que não é uma, nem duas, mas sim 3 pessoas diferentes que não tem relação entre si e se conhecem apenas por virem da mesma cidade pequena na qual todos nós moramos. E mesmo a minha vida toda tendo essa ansiedade em sair dessa cidade, não conseguiria fazer o que fizeram.
Eu planejo todos os meus próximos passos nos mínimos detalhes. Em experiências anteriores levei dois anos pra mudar de cidade, iniciar uma vida diferente, muito planejada, mas nem tão distante da que eu já levava. Tudo o que eu faço tem que ter um propósito. O que alguns podem dizer que contradiz meu texto anterior em que afirmo que não tenho um propósito de vida. Mas aqui estou falando em pequena versus larga escala. Apesar de não ter um objetivo geral na vida, as coisas que faço, faço com pequeninos objetivos no dia a dia. Eu nunca saio de casa porque só saio quando tenho motivos. Todas as minhas viagens nos últimos 10 anos tiveram um motivo, um evento. Não lembro qual foi a última vez que viajei só por viajar…
Sim, claro, culpo meus pais superprotetores que não me deixavam sair de casa pra quase nada na infância e adolescência, mas também… eu já tenho 31 anos, já devia ter superado tudo isso. A verdade é que eu gosto de rotinas e sempre acabo caindo na segurança delas, mesmo que sejam as mais ridículas possíveis: dormir às 4 da manhã e acordar meio dia, passar fio dental todas as noites antes de dormir, não deixar louça na pia pro dia seguinte, lavar o cabelo toda terça, quinta e sábado.

Eu queria ter a coragem que tenho nas minhas fantasias, nos meus devaneiosinhos. Ali eu conheço novas pessoas, tenho novas experiências. Mando mensagem para o único cara com quem eu tenho vontade de transar nos últimos anos perguntando exatamente se ele não quer transar. Na vida real silenciei os stories dele e só vejo quando ele vê os meus, justamente para não criar muitos devaneiosinhos sobre ele já que ele raramente vê meus stories. (Claramente não adiantou nada.) Eu crio todo esse mundo na minha cabeça. Eu combino de sair, me arrumo pra sair, saio, encontro com pessoas, tudo dentro da minha cabeça. E o pior é que já me sinto satisfeita com tudo isso. E acho incrível como mesmo sendo nos meus próprios devaneiosinhos, a maioria das coisas que faço ali sempre dão errado e volto pra casa sem mudança concreta de vida nenhuma. Exatamente como na vida real. [Esse parágrafo existe numa linha tênue entre a neurose e a psicose, tenho plena consciência disso.]
Só que para mudar eu preciso de terreno firme, saber muito bem onde estou pisando. Prefiro jogar jogos em que tenho a certeza que vou ganhar e por isso não gosto nem um pouco de jogar a maioria dos jogos. E também porque raramente entendo as instruções, só vou entender pela metade quando já está todo mundo lá na frente e eu ainda nas primeiras casas, sem carreira, o banco cobrando uma dívida herdada do meu tio, 6 filhos no banco de trás, sem nenhum suspeito do assassinato marcado no bloquinho e nenhum imóvel no meu nome.
Gosto de pensar que aprendo com os erros dos outros. Mas nessa altura parece que todo mundo que eu conheço está batendo com a cara na parede. Ou será que são só os de Humanas? Todos os caminhos que eu penso em andar alguém já andou e chegou num beco sem saída. Só existe aquela opção de escrever pra rede social, porque é a única coisa que paga e também parece que vai sugar minha alma pra fora do corpo aos poucos. Idem pro concurso público. Mas com o passar do tempo a área está afunilando, os outros construindo carreiras, e só tem sobrado esses empregos, que ou aceita ou espana pra outra área que também está afunilando. Não dá tempo de mudar mais. É isso ou é isso, e a falta de opção me deixa mais exausta ainda.
Nessa hora em que me sinto cansada até de pensar e cogito mudar pra outra área me vem a brilhante ideia: e se eu largar tudo e ir pra Arraial D'Ajuda viver do que a natureza me dá? Afinal, as pessoas fazem isso no Tiktok e parece que dá certo pra elas. Mas aí eu lembro que a vida no Tiktok, Instagram e afins é toda editada com filtros bizarros e ninguém gosta muito de mostrar os perrengues, dificuldades e gastos. Principalmente os gastos. Sempre colocam os gastos nos comentários, de preferência bem escondidos. Como a menina que construiu uma casa de pau a pique e gastou 80 mil dólares fazendo isso e só descobri porque fui ler os comentários. A gente sempre tem que ler as letras miúdas, até mesmo dos vídeos da vida alheia. Pra não ter devaneios que a gente acha que podem se tornar realidade, dar uma passo maior que a perna, pisar em areia movediça e não ter como sair de lá. Desesperador pensar em afundar na areia movediça do terreno incerto, mas também desesperador o pensamento de viver a vida toda na mesma ilha firme sem conseguir sair dela.
Esse texto não tem um final. [Nem parece ter muito sentido, talvez seja apenas um fluxo de consciência à lá James Joyce chapado de anfetaminas.] Quando era mais jovem costumava acreditar que tudo que eu escrevia deveria ter um final surpreendente, um grande clímax, uma frase de efeito. Costumava acreditar também que a vida ia começar a qualquer momento. Depois que eu terminasse o colegial, depois que eu terminasse a faculdade. Não percebi que aquela ali já era a vida. Mas agora eu já sei. Vou tentando, dando um passinho ou outro, sem me perder demais nos meus Devaneiosinhos Diários, me esforçando pra viver a vida real, nem que seja um diazinho por mês.
Maria Raqueeeeeeeeeel! Eu também tenho sindrome do devaneio excessivo. Eu também planejo tudo da minha vida, eu também amo rotina, eu também não saio de casa sem objetivo. Laudo médico: lua e ascendentes em escorpião!!! (e no meu caso, sol em virgem!)
Adorei!!