Libertação Silenciosa
Notas sobre expectativas que colocamos em nós mesmos e que a sociedade coloca em nós
Não era assim que eu queria ter chegado aos 30. Na minha cabeça do passado, nas minhas fantasias adolescentes, tudo era para ser diferente. Depois dos 18 eu parei de planejar a longo prazo, mas mesmo assim esperava um resultado diferente. Um resultado que só seria obtido se tudo tivesse sido planejado. Como não planejei nada, não alcancei nada. Ninguém disse que ia ser fácil, mas não precisava ser tão difícil assim — por um tempo durante a adolescência Coldplay foi minha banda preferida, hoje só resta essa frase no meu acervo.
Sinto como se estivesse apenas existindo. As outras pessoas são assim? Se sentem assim? Ou esse pessimismo de vida é relegado a apenas um seleto grupo de pessoas azaradas? Assisti Notas de Libertação (me recuso a chamar de Diário para Liberdade) meses atrás e ficou comigo. Acho que nunca vai me deixar. Nesse drama escrito pela minha roteirista coreana preferida, a personagem principal tem monólogos longuíssimos em que expressa exatamente essa ideia de solidão sentimental. Nada me interessa, nada vale a pena. Não sei como sair desse círculo de não importância: eu não me importo com nada ou ninguém, e o oposto também ocorre. Não é exatamente uma depressão, mas um cansaço exaustivo em estar vivo. Não quero morrer, mas acordar todos os dias me exaure. Acordar, tomar banho, comer, fazer um trabalho ou outro, comer, tomar banho, dormir. Nada acontece, nada importa, os dias passam todos iguais, os meses e os anos se vão.
Outro dia me peguei pensando nos meus 40 anos. Serão daqui 1 década, mas não consegui não deixar escapar um "é tão pouco tempo!". Aos 21 eu era outra pessoa, tinha outros planos, achava que muito iria acontecer… mas estou de volta no mesmo lugar onde estava 20, 15, 11 anos atrás e nada mudou. Me sinto mais cansada, mais madura, mas não como meus avós se sentiam, em ter vivido, mas sim como um hamster após ter feito seu exercício diário em sua rodinha dentro de sua pequena gaiola. Talvez eu também precise de Notas de Libertação.
Encontro refúgio nas séries, novelas, nos filmes. É como se eu conseguisse viver por eles o que não vivi e o que não vivo. Eles me confortam em me mostrar que nem sempre estou sozinha nos meus sentimentos. Eles me mostram lugares em que nunca estarei e relacionamentos românticos em que nesse momento da minha vida custo a acreditar que um dia terei.
Mas eles às vezes também instauram em mim mais um sentimento pessimista de inveja. Nunca estarei nesses lugares, nunca viverei um romance assim… e mesmo sentindo tudo isso, continuo sem fazer nada. Eu saio de casa e nada me atrai. Encontro com amigos, mas eles não me entendem. Pessoas novas não se interessam pelo que tenho a dizer, ou então eu não me interesso pelo que eles têm a dizer. Todos me parecem fúteis, tudo me parece bobo. Volto para casa mais exausta ainda. Volto a rotina, que me entedia, mas pelo menos não me desgasta. Continuo em minha rodinha de hamster.
Tenho esperança de algo novo acontecer, ao mesmo tempo em que todas as minhas experiências passadas nessa mesma vida até aqui me dizerem para não ter. Até agora minha vida foi sempre um grande quase: quase a garota mais aplicada da turma, quase sei tocar piano, quase sei nadar, quase passei no curso que queria, quase segui uma carreira, quase tive namoros, quase me apaixonei. Nada de concreto nunca aconteceu, passei pela vida durante esses 31 anos sem viver. Não tenho nada, nenhuma experiência que valha a pena. Mas principalmente nenhum romance para recordar.
A grande virada dos filmes é que coisas acontecem neles. Mesmo quando, no início, a vida dos personagens é parecida com a minha, depois de 2 horas, 16 episódios ou 150 capítulos, os personagens saem com algo a mais de suas experiências. Uma vida mudada, um romance, um emprego… durante todos esses 31 anos nada disso aconteceu na minha vida. Os outros pensam obssessivamente sobre isso como eu? Ou apenas continuam vivendo sem esperar nada, sendo gratos por abrir os olhos todos os dias? Deveria eu ser grata ao abrir os olhos? Ao invés de pensar "não queria acordar nunca mais", "mais um dia acordando", deveria eu pensar: "estou viva"? Para que? Por que?
Existencialismos metafísicos à parte, apesar de todas as dúvidas e pessimismos, continuo abrindo os olhos, levantando da cama, tomando banho, comendo, fechando os olhos novamente… continuo, mesmo sem querer, mesmo sem entender bem o porquê. Vou em frente esperando algo. Talvez seja exatamente essa esperança em algo acontecer que me faz continuar abrindo os olhos todos os dias. Por isso os filmes me ajudam tanto. São eles que me dão ideias de que algo pode acontecer não importa minha idade. "Continue vivendo que isso talvez aconteça com você também algum dia."
Venho dizendo para todos os meus amigos que fazem 30 ou 31 esse ano que a década dos 30 só começa aos 31. Porque é assim que tenho me sentido. Quando eu tinha 20 ou 21 todo mundo nos 30 anos tinha uma vida tão diferente da que eu e todo mundo que eu conheço na casa dos 30 tem hoje.
Nos anos 2010 a Geração X era adulta igual os Boomers, mas eu me sinto uma adulta diferente. Não sei se sei explicar bem. Mas meio que tá todo mundo perdido, ou os millenials combinaram de não fingir que a gente, como adulto, sabe o que está fazendo. Os millenials simplesmente resolveram falar pra todo mundo que não sabem ser adultos, ou que ser adulto é não saber bem o que fazer. A gente só viveu mais e tem mais experiência que as pessoas mais novas que a gente, mas às vezes continuamos errando do mesmo jeito que elas e do mesmo jeito que já erramos no passado. Penso que nossos pais só eram melhores em esconder os próprios erros. E nós, como geração, somos péssimos em esconder, principalmente nossos erros.
Culpo a internet: a gente cresceu falando tudo pra todo mundo, e compartilhando nossos erros e acertos. Por que hoje só compartilhamos acertos? Será que, com a rapidez das redes sociais, os erros bobos e estúpidos que a gente partilhava nas postagens quilométricas das comunidades do Orkut e nos posts autocomiseráveis do Blogspot não tem mais espaço e o que gera engajamento são as medalhas medalhas medalhas? Vencer engaja, perder nos entristece e nos lembra dos nossos próprios fracassos. Quem não engaja não é visto pelo algoritmo e quem não é visto não existe? Penso que essa é uma discussão sem propósito. O sistema é o sistema, e quem não se encaixa nele está fora.
Às vezes simplesmente cultivo um pouco a fantasia de excluir todas as minhas redes sociais e escrever como se fosse a Emily Dickinson na década de 1860. Ou ainda nem mais escrever. Arranjar um trabalho qualquer, viver a vida real. Parar de pensar tanto. Seria uma libertação ou um aprisionamento? Meu coração aperta toda vez que penso nessa possibilidade, como quando eu era criança e tinha que fazer algo que não queria. Ou quando tinha que apresentar trabalho pra sala na escola. Uma dor quase física.
Estou descobrindo agora coisas sobre mim mesma que deveria ter descoberto aos 21 anos. Meu estilo de escrita, o que e como gosto de me vestir, até mesmo o que gosto de comer. Não é que meus gostos mudaram ou evoluíram durante esses anos, mas sim como se eu não estivesse sintonizada comigo mesma. As coisas foram acontecendo, a vida passando como rolo compressor, e eu fui aceitando, vivendo todos esses eventos um em seguida do outro sem me dar conta direito, sem parar pra pensar (nem tinha tempo pra isso). Talvez seja por isso que me sinto tão atrasada em relação às outras pessoas.
Não espero da vida fama, dinheiro ou reconhecimento. Eu queria transcender a existência humana, ser etérea. Me transformar numa ideia, um conceito, alheia às necessidades primitivas do cotidiano. Não sei se alguém já conseguiu isso. Talvez Clarice Lispector. Ou Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Alguns filósofos. Mas não sinto que chegarei lá com as ferramentas que me são disponíveis no momento ou mesmo que me foram disponíveis até aqui.
Não sei se pensar tanto vai me levar necessariamente pra algum lugar diferente de onde estou. Se vai me "impulsionar" para frente, seja lá onde essa frente é. Mas não consigo parar, é maior que minha força de vontade, maior que mim mesma. Eu consigo pelo menos abrir os olhos todos os dias ao acordar sabendo que dentro de mim estou me sentindo cada dia um pouco mais libertada em saber que não existe linha de chegada, que não existe objetivo. Um dia após o outro. Não coloco nenhuma expectativa em mim mesma, e os outros já cansaram de colocar, perceberam que não adianta. Pra mim a vida é isso: um dia após o outro, uma sequência de fatos, de ocasiões, de risadas, de tédios, de refeições, de encontros… até acabar.
Imagens: https://ladykiatown.com/2022/04/unforgettable-quotes-of-my-liberation-notes-korean-drama.html