Revista Acadêmica #1: Criador e Criatura
A ficção científica realista e a gênese humana; de Frankenstein a O Clone
Escrevi esse artigo científico para um concurso de uma revista acadêmica. Não foi escolhido. Depois ofereci para um site, que se interessou, mas não retornou mais nenhuma comunicação. Resolvi postar por aqui. É um artigo acadêmico, então é provável que fique maior que o permitido no email.
Se a condição da consciência humana orgânica se estabelece em questionar o objetivo da própria existência e se essa condição se desliga totalmente dos mistérios da criação divina, o homem se torna autossuficiente como imagem criadora e seus questionamentos se voltam não mais para origens religiosas, mas sociológicas, orgânicas e científicas. Uma discussão hipotética que se dá no âmbito da fantasia e da ficção científica, a ignição de vida humana a partir do próprio conhecimento científico que vem do conhecimento adquirido pela humanidade, figura tanto no romance de 18311 de Mary Shelley, Frankenstein, quanto na telenovela de 2001 de Glória Perez, O Clone. Doutor Frankenstein e Doutor Albieri são, ambos, figuras enigmáticas e filosóficas que se angustiam com suas criações e divagam entre pensamentos metafísicos.
A trama principal da novela gira em torno do amor impossível entre a muçulmana Jade (Giovanna Antonelli) e o brasileiro Lucas (Murilo Benício), aparentemente não apresentando características de ficção científica e sim muito do realismo melodramático típico do gênero. É no médico geneticista Albieri (Juca de Oliveira), padrinho de Lucas, que O Clone diverge de uma telenovela típica para uma reflexão sobre os limites da criação humana, transformando a trama em um exemplar do gênero de ficção científica. Albieri é o principal personagem dos núcleos secundários: dono de uma clínica de fertilização artificial, consegue criar um clone de Lucas, e num impulso insere sua criação em Deusa (Adriana Lessa) sem ela saber que aquele não é geneticamente seu filho. Vinte anos depois, a revelação da existência do clone Leo (também Benício), que cresceu tendo uma vida normal com a mãe Deusa, gera atritos afetivos e jurídicos entre todos os envolvidos, até mesmo o pai de Lucas, Leônidas (Reginaldo Faria).
A abordagem sobre inseminação artificial e suas repercussões legais já havia figurado como trama principal de outra telenovela da autora 10 anos antes. Em Barriga de Aluguel, um casal (Cássia Kis e Victor Fasano) tem sua vida transformada ao decidir se aproximar da moça que os ajuda a gestar seu filho biológico (Cláudia Abreu). O que já era realidade na época dá espaço em O Clone para um passo além: a telenovela de 2001 entra no campo da especulação científica ao tratar, dentro da trama, da realidade de um jovem que teve sua origem biológica em uma clonagem.
Ficção científica realista2
Dentro do campo da ficção científica, Frankenstein pode ser considerada uma das primeiras obras classificadas no gênero. Victor Frankenstein, o personagem principal da obra de Shelley, apesar de nebulosamente referenciar estudiosos da alquimia, parece unir ambos ciência e alquimia com tecnologias conhecidas na época para criar vida humana de forma científica. Albieri, cientista geneticista, também usa das ideias em voga em sua época e conhecimentos científicos para criar vida humana orgânica de forma paralela à origem tradicional.
Com a ideia do uso de uma ciência “realista” dentro da ficção, O Clone e Frankenstein não se assemelham apenas nos personagens obcecados em criarem vida, mas sim ao apresentar ficções extremamente fundamentadas na realidade em que se ambientam. Ao oposto de outras obras que tratam de viagens no tempo ou corriqueiras idas ao espaço, toda a ação, tanto da telenovela quanto do romance, se passa no "mundo real". Assim, pode-se propor uma classificação de O Clone em que a obra se encaixe entre a Ficção Realista e a Ficção Científica: a Ficção Científica Realista; que se passa no mundo real(ista) em que vivemos, utiliza tecnologias conhecidas e até comuns ao ser humano (ou a algum grupo específico de seres humanos) mas atinge objetivos que figuram apenas em conjunturas, sem modificar o status quo da sociedade em que a história se insere. Mudando apenas a vida de um grupo seleto de personagens/pessoas que se relacionam com o protagonista, não atinge as regras ou a configuração da sociedade, que segue normalmente em sua realidade sem grandes perturbações.
Em oposição a outras categorias que também propõem o uso da ciência de forma “realista”, a FC Realista não trata de conjunturas espaciais ou viagens no tempo, mas está sempre atrelada ao mundo do autor. Se no “hard scifi” proposto por Miller em The Reference Library a extrapolação da "física escolar” é imprescindível, na FC Realista essa física pertence à sociedade do autor, sem extrapolação alguma. A ambientação do hard scifi não é importante: a história pode se passar em local e tempo ainda não existentes, beirando a especulação fantasiosa. O Clone também não é uma obra de FC Mundana (“Mundane scifi”3) que apresenta situações e percepções humanas/cotidianas em cenários de ficção científica, mas com ambientação não necessariamente no mundo atual em que vivemos e não necessariamente com as tecnologias que temos disponíveis hoje, podendo se passar no futuro ou em sociedades distópicas.
Talvez a categoria de ficção científica que se aproxime mais, tanto de O Clone quanto do romance Frankenstein, seja a proposta por Gabriel Lisboa em um vídeo do Youtube4: a Ficção Científica Minimalista. Adaptando/traduzindo o termo “lo-scifi” trazido por Alfredo Suppia em Cinema de ficção científica lo-fi: uma categoria sob escrutínio, a FC Minimalista abrange a produção cinematográfica de FC de "baixo orçamento". Na expansão da categoria por Suppia: são filmes que trazem “(1) a flexibilidade orçamentária, (2) a eventual alusão ao paradigma analógico, (3) o apelo nostálgico e o efeito de estranhamento extremado do presente ou de um futuro muito próximo, indiscernível do presente, em favor do comentário de temas da agenda contemporânea, (4) a ênfase em atmosfera, (5) a ênfase na reatividade subjetiva dos personagens e (6) a orientação realista em sentido lato, variável em função de opções estéticas/ideológicas. Pergunto-me, finalmente, qual seria o atributo mais relevante no contexto dessa filmografia de FC lo-fi, e se porventura esse atributo não seria uma ampla e difusa inclinação realista."
Assim, apesar de O Clone apresentar algumas das categorias listadas, não se encaixa como obra de FC minimalista/lo-scifi por ter um realismo extremo. A "inclinação realista” da produção cinematográfica de FC Minimalista é também a principal característica proposta pela FC Realista, onde essa "inclinação" se aproxima o máximo possível da realidade das autoras e da sociedade no período de composição e apresentação/publicação da obra.
Que ambas as obras Frankenstein e O Clone são exemplares da ficção científica é indiscutível, porém elas se encaixam em uma subcategoria diferente das já propostas anteriormente. Frankenstein por ter sido pioneira em sua concepção, e O Clone por pertencer à teledramaturgia audiovisual folhetinesca, que automaticamente traz em si uma verossimilhança com a realidade. Essa característica audiovisual é o que, segundo Suppia em Realismo e cinema de ficção científica: equilíbrio delicado, não apenas conecta a obra ao público como também o faz acreditar na história sendo contada. "Muitos filmes de ficção científica partem de razoável embasamento científico e documental, num claro esforço de afiançar ainda mais um discurso que, já de início, goza da impressão de realidade do cinema", realidade essa que é a característica mais marcante da ficção científica dentro de O Clone. Citando Brooke-Rose, Suppia também apresenta que "pelo menos a FC tradicional toma na íntegra e no atacado a maioria das técnicas da ficção realista: a narrativa pós-datada no pretérito, o flashback explicativo e o abuso do discurso indireto livre para os pensamentos dos personagens”, todas características amplamente presentes no gênero teledramatúrgico das novelas. A maior diferença narrativa de O Clone para outros exemplares de telenovela é justamente a exposição dos pensamentos de seus personagens, narrados pelos mesmos com um recurso de áudio em off (sem que os personagens aparecam falando) que expande seus conflitos internos, principalmente os do médico Albieri e do clone Leo.
A telenovela por si, fazendo parte de um gênero folhetinesco de teledramaturgia que se origina na produção de mimese de histórias corriqueiras do dia a dia, sendo também exibida cotidianamente e se misturando com as tarefas diárias de seus espectadores, tem vantagem sobre o espectador no âmbito de imitação da realidade em oposição ao cinema. Estando literalmente dentro dos lares ou ao lado das pessoas através de televisores ou celulares (com o advento do streaming), não há o impedimento físico do deslocamento de local, facilitando uma imersão mais rápida e imediata entre a realidade do mundo e a imitação da realidade folhetinesca da telenovela.
Se, segundo Quintana em Realismo e Cinema de Ficção Científica: Estranhas Conexões, a fotografia e o cinema testemunhariam a existência das coisas do mundo, a telenovela como folhetim em tempo quase-real5 é testemunha mais fidedigna, pois apresenta uma verossimilhança e espelhamento de fatos cotidianos do mundo atual. E se, segundo Janete e Oliveira em Ficção Científica nas Novelas Brasileiras, o espectador "cobra uma coerência dentro da trama da telenovela em relação aos costumes da sociedade em que está inserido", e se O Clone é uma trama de conjuntura científica, apresentada de modo realista com personagens críveis e verossímeis a figuras que o espectador encontra em seu próprio dia a dia (o médico geneticista, a manicure, a secretária do médico, o empresário, a dona de bar, o alfaiate, etc), essas características acabam por tornar a obra, dentro do universo do folhetim e como exemplo de ficção científica no geral, uma obra de Ficção Científica Realista.
Ainda em Janete e Oliveira, para uma telenovela se encaixar no gênero de ficção científica é preciso que "as hipóteses e situações tratadas não sejam fatos na realidade do espectador, mas que possam ser especuladas com base num dado ou inovação científica. Isso remete ao conceito de verossimilhança, ou seja, um conjunto específico de expectativas que o público carrega consigo e o utiliza, ao longo da exibição da obra, para reconhecimento e compreensão, tornando aquilo que se vê na tela inteligível e explicável”. O Clone traz informações presentes no dia a dia do espectador, comentadas em notícias de jornais e telejornais da época; embora os experimentos de clonagem não façam parte efetivamente da vida da maioria, são assuntos de conhecimento geral, também por terem sido noticiados no telejornal da própria emissora apenas horas antes da exibição dos capítulos da telenovela. Santos faz um apanhado geral dessa relação "vida real e ficção na telenovela" em Discurso científico e telenovela: uma análise de O Clone:
"Glória Perez articulou no enredo de O Clone características da ficção científica, mas não apenas inspirou-se na Ciência, utilizou o seu discurso efetivo fazendo a combinação entre ficção e discurso científico, motivo pelo qual a discussão sobre clonagem invadiu todos os meios de comunicação, ganhou o espaço público. Ao misturar os elementos característicos da telenovela (mitos, arquétipos, verossimilhança, intertextualidade ficcional) ao discurso da ciência, Glória Perez trabalhou um conteúdo científico de maneira didática. Ainda que possamos fazer críticas à simplificação e sensacionalização deste discurso, o mérito da autora foi promover o debate acerca da clonagem, fazer a discussão sair dos laboratórios, do “mundo da ciência” e ganhar as ruas."
A ficção científica de O Clone, embora ainda pertencente ao âmbito da ficção melodramática folhetinesca, se aproxima numa linha tênue da realidade, chegando a se confundir levemente com ela. Se o clone como experiência humana nunca foi comprovado, sua possibilidade real é indiscutível teórica e cientificamente. Assim, se “[a] Ficção por sua vez trata de algo que não tenha uma plena representação na realidade, e por sua vez pode ser REALISTA ou não, entendendo "Realista" no sentido de Plausível. As Ficções Realistas então, são aquelas que poderiam ocorrer no contexto da realidade sem violar a normalidade do mundo, podendo inclusive, muitas vezes, serem confundidas com eventos reais, o que obriga muitas produções a incluírem a advertência de não se confundir tal obra de Ficção, com fatos, eventos, lugares ou pessoas reais, cuja qualquer semelhança será mera coincidência”, como propõe Marcus Valerio em uma palestra de 2011, O Clone pode, de fato, ser considerada uma obra Realista. Mas também, se “A FICÇÃO CIENTÍFICA é relativamente fora da realidade. Isto é, está fora apenas no contexto em que vivemos, poderá ser real numa época futura, pode ter sido real numa época passada, ou em um outro mundo ou local em especial”, pode se inserir como obra de Ficção Científica, já que um clone humano ainda não foi comprovado cientificamente e/ou publicamente, mas é uma conjuntura que pode ocorrer no futuro.
O Clone se opõe a outras telenovelas brasileiras de ficção científica ao se manter firme durante todos os seus 221 capítulos em um realismo típico do gênero brasileiro, apresentado principalmente nas obras das 20h/21h, que tendem mais a abordar dilemas da sociedade que a se firmar no melodrama apresentado em outros horários (o que ocorre em novelas com elementos de ficção científica como Morde e Assopra (2011) e Tempos Modernos (2010), ambas exibidas às 19h e com tons fantásticos/mágicos atrelados aos elementos científicos). Se na telenovela seu formato e exibição ajudam na percepção da verossimilhança com a realidade do telespectador, no livro de Shelley é através das viagens de Victor pelo interior de alguns países da Europa (Bélgica, França, Inglaterra, Escócia e Itália, além de seu país natal, Suíça) e das descrições de suas paisagens que a autora causa a sensação de verossimilitude necessária para fazer o leitor acreditar que a trama se passa contemporaneamente à época de publicação. A ambientação de Frankenstein entrega uma percepção realista, porém, ao contrário de O Clone, Shelley não utiliza dados científicos para trazer seu monstro à vida, preferindo deixar o processo laboratorial do cientista em nebulosas descrições alquímicas.
170 anos de ficção científica no laboratório: de Frankenstein a O Clone
A principal semelhança entre o romance de Mary Shelley e a telenovela de Glória Perez é a criação de um ser “humano” dentro de um laboratório, dando a ele a centelha de vida de forma artificial; ou ainda, não natural. Com essa criação vem também um debate sobre a responsabilidade da origem da vida. Apesar de o romance não conter realisticamente processos científicos, sua parte inicial se passa com Victor Frankenstein na universidade estudando ciências (ou pseudociências) e experimentando em um laboratório improvisado em seu alojamento. Já em O Clone, Albieri trabalha efetivamente em um laboratório de genética, assim como é explicado diversas vezes o processo do surgimento de um clone.
Mesmo misturando ficção com realidade, O Clone “conseguiu promover amplamente o debate público sobre a clonagem e seus princípios morais e éticos” e “representou um momento de intensa discussão científica num produto da cultura de massa" (Anderson Ricardo Carlos no artigo Dr. Albieri e as visões científicas na novela O Clone: debates para a comunicação pública da ciência). Se Frankenstein era um jovem que não sabia muito bem o que estava fazendo, levando três anos de tentativas frustradas em experiências cadavéricas, Albieri, um renomado geneticista que já clonava rotineiramente animais, se assemelha ao primeiro em busca de glória e ineditismo.
"A riqueza era objetivo menor; mas quanta glória eu não teria por aquela descoberta, se fosse capaz de banir a doença do organismo humano e tornar o homem invulnerável a tudo que não fosse a morte violenta!" (p. 101)
“Todo cientista é levado por isso, é levado pela vontade de testar os limites das possibilidades. Tudo que nós conquistamos até agora nasce dessa audácia" Albieri (cap. 120)
Os dois acabam frustrados em seus objetivos: Frankenstein teme tanto sua criatura que prefere fugir a anunciar ao mundo seu feito, e a clonagem de Albieri é uma ideia tão antiética para seus colegas que nenhum deles crê na existência do clone. Sua fuga junto a Leo ajuda a negar sua criação, não deixando prova concreta alguma da clonagem além de documentos de um caso judicial que não poderiam ser divulgados por correrem em segredo de justiça.
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Frankenstein temer sua criatura e Albieri se fascinar por ela é talvez a maior divergência entre os dois. Muitas versões da história mostram Frankenstein como um cientista fora de suas faculdades mentais, “louco” e “obcecado”, isolado do mundo e sem relacionamentos reais, enquanto no material base ele é apenas um homem que fabricou uma situação acima do que conseguiria lidar por ambição, se encontrando aos poucos numa espiral crescente de instabilidade. Frankenstein e Albieri são seres humanos comuns, com relacionamentos e amizades. Ao serem confrontados com os erros da impulsividade que cometeram e contemplarem suicídio, a arrogância de Albieri e o segredo de Frankenstein os impedem de deixar suas criaturas solitárias no mundo, o que faz com que Albieri seja a adaptação mais próxima de Victor Frankenstein como personagem.
Para espanto dos criadores, suas criaturas são surpreendentemente eloquentes e expressam seus sentimentos, mesmo confusos, principalmente em relação a suas origens:
“Enquanto eu lia, porém, debrucei-me sobre meus próprios sentimentos e condição. Percebi que eu era parecido, mas ao mesmo tempo estranhamente diferente dos seres de que tratava minha leitura e daqueles cujas conversas eu ouvia. Solidarizava-me com eles e em certa medida os entendia, mas no íntimo eu vacilava; não dependia de ninguém nem tinha relações pessoais. “O caminho de minha partida estava livre”; não havia ninguém para lamentar minha aniquilação. Minha pessoa era hedionda e minha estatura, a de um gigante. O que isso significava? Quem era eu? O que era eu? De onde vinha? Qual era meu destino? Eram perguntas que voltavam continuamente, e eu não conseguia respondê-las."
"Assim como acontecera com Adão, aparentemente laço nenhum unia-me a qualquer outro ser existente; o caso dele, no entanto, era bastante diferente do meu em todos os outros aspectos. Produto das mãos de Deus, era uma criatura perfeita, feliz e próspera, guardada sob a proteção especial de seu Criador; tinha permissão para conversar com seres de natureza superior e deles obter conhecimento; eu, no entanto, não passava de um miserável indefeso, e só. Muitas vezes considerei Satã um emblema mais adequado de minha condição, pois com frequência, como ele, diante da bem-aventurança de meus protetores, eu sentia se avolumar em mim a bile amarga da inveja." A criatura reflete sobre suas origens pgs. 202-203 e 204
A origem não natural do monstro e do clone faz com que se sintam deslocados da sociedade, sem laços familiares genéticos com ninguém. Se o monstro não apresenta nome próprio e o livro que conta sua história leva o nome de seu criador, Leo também vaga entre a identidade de Lucas e Diogo (irmão gêmeo de Lucas, cujo falecimento é a principal motivação para Albieri criar o clone). A novela leva um nome que desumaniza a criatura, a insere em um papel de "outro" que causa estranheza e a aliena do coletivo humano. Nem a criatura de Frankenstein nem o clone de Albieri têm lugar na sociedade humana, ambos se sentindo deslocados dos outros ao seu redor, mesmo tendo, intelectualmente, todas as qualidades humanas para pertencer a essa sociedade.
Os dois questionam suas origens e indagam sobre o motivo de existirem. Fazem essas indagações não para seres divinos, mas sim para humanos “como” eles, que não tem as respostas que buscam. Tanto Albieri quanto Frankenstein também apresentam as mesmas indagações de suas criaturas, e assim suas respostas não são suficientes para que as criações tenham a paz de espírito necessária para viver com outros humanos. Além de suas aparências e da necessidade de companhia, Leo e o Monstro se perguntam por que existem e, tendo seus criadores em carne e osso não apresentando respostas satisfatórias, não entendem que essa é uma pergunta metafísica, continuando a perseguir mistérios filosóficos milenares que seus próprios criadores também perseguem.
"Deus é a pressa do homem em explicar o que existe. É a necessidade de controlar essa coisa sobre a qual não se tem controle algum que é a vida!" Albieri (cap. 120)
As reações dos criadores perante a revelação de suas criações ao mundo espelham as normas morais em que as sociedades de cada época se baseavam. Enquanto as morais de Frankenstein e da sociedade da virada do século XVIII para o XIX em que ele está inserido o fazem temer e se envergonhar do limite que ousou ultrapassar em sua experiência humana, Albieri se vangloria e narcisisticamente deseja ser conhecido por sua criação, refletindo os valores sociais do começo do século XXI — com a televisão e a internet —, onde a exposição e a inovação são elevadas a uma esfera divina e vangloriadas como o último passo do sucesso. Enquanto para Frankenstein os valores morais atrelados à religião hebraico-cristã regem sua culpa e seu sentimento de vergonha, para o ateu Albieri a experiência humana genética é sua maior prova de sucesso absoluto e pioneirismo sem precedentes.
Para além dessa moral, ambos têm uma obsessão com a morte em oposição à vida que os faz questionar suas intenções, mas mesmo assim continuar suas experiências:
"Ao desenvolver tais reflexões, pensei que, se eu era capaz de presentear com a vida a matéria morta, talvez pudesse, com o tempo (embora hoje tenha descoberto ser isso impossível), fazer reviver um corpo que a morte aparentemente condenara à deterioração." (p. 117)
"O único sentido da existência do homem é vencer a morte. Toda a história humana é a luta do homem para subjugar a natureza, não é verdade? O que nos move é essa vontade imensa de permanecermos vivos." Albieri (cap. 168)
Frankenstein e Albieri, Prometeus6 modernos, buscam a vida eterna na ciência laboratorial, tentando unir o segredo divino ao esclarecimento científico. Para Albieri, o clone seria apenas uma versão mais nova do clonado, que não teria sentimentos próprios e acabaria por substituir o clonado num ciclo eterno, sem levar em consideração a consciência humana gerada por seu próprio experimento: Leo não é Lucas, é ele mesmo, com suas próprias experiências de vida e sua própria bagagem emocional. Desconsiderando o ambiente e as condições de criação, Albieri deturpa o resultado de sua experiência e acaba por se provar errado. Embora o clone seja geneticamente idêntico a sua matriz, sua vivência acaba por fazer dele um ser único em si mesmo.
Similar ocorrência aparece com Frankenstein e sua criatura. Ao abandonar sua criação à própria sorte, sem preparo algum para lidar com as nuances e sentimentos humanos, Frankenstein priva seu monstro dos afetos que tanto anseia e necessita, o transformando numa criatura cruel. O ambiente e as situações que o Monstro tem que enfrentar acabam por fazê-lo acreditar que nunca poderia se inserir na sociedade humana. E, se não faz parte da sociedade, suas regras também não valem para ele. Mesmo sabendo que os crimes e assassinatos que comete estão num escopo de “erro” moral, o Monstro não se importa, já que não faz parte da sociedade em que esses atos são punidos. Frankenstein abandona o monstro à própria sorte, e essa é sua ruína; enquanto Albieri quer ter um controle doentio sobre Leo, o que também é sua ruína.
Leo é a mais bem-desenvolvida "personagem-criatura" dentre as duas por ter uma completa experiência humana. Apesar de apresentar pequenos comportamentos que denunciam sua origem não "natural" — como a falta de entendimento sobre algumas regras sociais, principalmente na questão de relacionamentos romântico-afetivos, ou mesmo familiar-afetivos —, essa característica pode ser atrelada à alienação parental que Albieri fez em Leo contra Deusa. Leo não nutre rancor ou sentimentos destrutivos em relação a seu criador. Se no romance a criatura de Frankenstein se compara constantemente ao Satã de Paraíso Perdido de John Milton, assim colocando o próprio Victor no lugar de criador impiedoso e inflexível que se põe superior e inalcançável; Albieri é para Leo o Deus divino pai benevolente, que nunca poderia errar, que nunca o prejudicaria. Por Leo ter tido a experiência humana da exposição à ideia da religião, principalmente a católico-cristã por parte da família de Deusa, ele atrela a Albieri a figura do Deus libertador do Novo Testamento, não mais o punitivo do Antigo Testamento hebraico-cristão. Ao contrário do Monstro de Frankenstein, que não o destrói exclusivamente pela esperança que nutre de o cientista lhe presentear com a companhia e afeto que tanto deseja; Albieri é, para Leo, seu único objetivo e sua única saída.
"Sempre foi uma ideia constante dos homens procurar buscar a imortalidade e tentar se igualar a Deus. Adão comeu o fruto da árvore proibida tentando atingir a sabedoria divina, Prometeu roubou o fogo dos deuses… hoje os cientistas se julgam poderosos o suficiente para criar vidas humanas como se fossem deuses. Mas serão mesmo?"
"E a alma? Será ela também mera junção de células passíveis de serem clonadas? Como bem disse Jaime Espinoza: a pretensão de fazer através da clonagem um ser exatamente igual a seu original é uma ilusão sobre todos os aspectos. A alma de uma pessoa não pode ser clonada, não se reduz à informação contida no DNA. E mais, o desenvolvimento psicológico, o ambiente que cerca a pessoa clonada, as suas experiências de vida, o conhecimento que adquire, a de levá-la necessariamente a ter uma personalidade diferente do seu original. Haverá a semelhança do físico, do temperamento, mas serão diferentes nas atitudes, no modo de pensar, nas respostas afetivas e em tudo aquilo que molda a personalidade de alguém. Nesse ponto de vista o clone seria na prática uma espécie de sósia… (...) a vítima silenciosa. A criança que resultaria dessa experiência estaria sujeita a graves traumas psicológicos, podendo sentir-se descartável, sem identidade, sem lugar no mundo. A clonagem perverte todas as relações fundamentais através das quais o ser humano se insere na sociedade, que é através da família, que é através da filiação, do parentesco." Juiz no discurso do julgamento de paternidade de Leo (cap. 219)
A única resolução possível para essas criaturas e seus criadores é o desaparecimento. Ambos se retiram do convívio social, temendo as repercussões de suas impulsividades. As geleiras árticas e o deserto marroquino são as únicas possibilidades para criador e criatura que têm o mesmo nível de divindade. A sociedade humana moderna não tem espaço para criadores humanamente divinos, nem para suas criações humanamente tortuosas. Se "Albieri se transforma na sombra do clone, escondendo a verdade de todos e estabelecendo um vínculo de cumplicidade cada vez mais forte com os telespectadores" propõe Robson Souza de Santos em Discurso científico e telenovela: uma análise de O Clone (p. 6), isso também ocorre com Frankenstein quando propõe caçar sua criatura. A morte de Frankenstein e o desaparecimento de Albieri trazem a única resolução possível para criaturas humanas que tentaram ser divinas, uma espécie de aviso fabuloso, uma lição moral sobre o “lugar” em que o ser humano se insere no universo.
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Shelley e Perez, mulheres inseridas em suas épocas, dão voz a personagens masculinos que buscam (re)criar a vida humana dentro de um laboratório. Com criações realizadas durante atos impulsivos, quando confrontados com a necessidade de continuar o mesmo trabalho e enfrentar as consequências dessa impulsividade, precisam refletir sobre as possíveis situações que poderiam ocorrer com outras criaturas da mesma origem, e as consequências de seus atos, se negando a propagá-las. Ao contrário do Deus hebraico-cristão que dá a Adão sua companheira, sem se importar com os acontecimentos que estão por vir ligados diretamente a Eva7, os cientistas acabam por decidir não criar outra criatura semelhante às originais, prevendo, com base nas escrituras, a queda da humanidade junto às suas criações.
A especulação semi científica de criação de vida de Mary Shelley continua dando frutos quase 200 anos depois. A ovelha Dolly foi prova de que o clone, empiricamente, é possível, e a inseminação artificial é o lembrete banal de que os limites da ciência humana estão corriqueiramente se expandindo. Mesmo com “avisos morais” e mensagens religiosamente ambíguas, as autoras conjunturam o que pode ou não dar errado na origem da vida orgânica "artificial", chegando a andar numa tênue linha entre o divino e o nietzscheano, onde suas criaturas têm relações complicadas com seus criadores. As obras, não explicitamente, acabam por indagar e questionar a origem da consciência humana e seu estranhamento dentro da sociedade normatizada em que vivemos.
Referências bibliográficas
CARLOS, Anderson Ricardo. Dr. Albieri e as visões científicas na novela O Clone: debates para a comunicação pública da ciência. In: Espaço Aberto, n. 4, 11 de abril de 2022.
JATENE, Í. de A.; OLIVEIRA, I. S. Ficção Científica Nas Telenovelas Brasileiras. In: Revista Zanzalá, vol. 1, n. 1, p. 1-14. Juiz de Fora: UFJF, 18 de janeiro de 2013.
MILLER, P. Schuyler. The Reference Library. In: Astounding Science Fiction, p. 142-149, November/1957.
PEREZ, Glória. O Clone. Rede Globo, 2001-2002.
QUINTANA, Haenz Gutierrez. Realismo e Cinema De Ficção Científica: Estranhas Conexões. In: Revista Studium, n. 8, p. 23-32. Campinas: Unicamp, 2002.
SANTOS, Robson Souza de. Discurso científico e telenovela: uma análise de O Clone. In: Ciência & Comunicação, v. 3, p. 1-15, 2006.
SHELLEY, Mary. Frankenstein, Ou O Prometeu Moderno. Versão ebook. São Paulo: Penguin-Companhia, 2015.
SUPPIA, Alfredo. Cinema de ficção científica lo-fi: uma categoria sob escrutínio. Revista Fronteiras - Estudos Midiáticos, vol. 18, n. 3, p. 305-318. Porto Alegre: Unisinos, setembro/dezembro de 2016.
SUPPIA, Alfredo. Realismo e cinema de ficção científica: equilíbrio delicado, Revista Lumina, vol. 3, n. 1, p. 1-15. Juiz de Fora: UFJF, junho de 2009.
VALERIO, Marcus. Palestra Filosofia da Ficção Científica na UnB. Brasília: UnB, 10 de junho de 2011.
Originalmente publicado em 1818, Frankenstein foi reeditado pela própria autora e republicado em 1831. A versão usada nesta análise é a segunda, de 1831, acreditando ser a versão final proposta por Mary Shelley.
Apesar de o termo "ficção científica realista" (em tradução livre de "sci fi realism") ter sido apresentado pela primeira vez pelo escritor e teorista de ficção científica Zheng Wenguang na década de 1980, neste artigo utilizo definição própria exclusivamente pela falta de material acessível em língua portuguesa e/ou inglesa sobre teoria e definições do subgênero de Zheng. Para mais acessar (em inglês): https://sfrareview.org/2021/04/22/the-history-and-reality-of-chinese-science-fiction-studies/
Conceito apresentado em Manifesto Mundano (The Mundane Manifesto) por Geoff Ryan de forma inicialmente irônica, mas que evoluiu para um "sub-gênero" na catalogação de Ficção Científica. O Manifesto (em inglês): https://sfgenics.wordpress.com/2013/07/04/geoff-ryman-et-al-the-mundane-manifesto/
Ficção Científica – Hard, Soft e Minimalista, Canal AvMakers. Acessar:
Levando em consideração o tempo entre a produção e filmagem de um capítulo até sua exibição na programação diária.
No mito grego, o titã Prometeu rouba o fogo (conhecimento) dos deuses e o entrega aos homens. Como punição, é amarrado a uma rocha onde uma águia vem todos os dias para comer seu fígado, que acaba por se regenerar e assim continuar um ciclo eterno de sofrimento. Mary Shelley dá a seu romance o subtítulo de "o Prometeu moderno".
Satã, disfarçado de serpente, faz com que Eva coma o fruto proibido da árvore do conhecimento. Ela convence Adão a também comer do fruto, fazendo com que sejam expulsos do paraíso (para mais: Livro de Gênesis da Bíblia, capítulo 3, e Paraíso Perdido de John Milton).
Eu amo MUITO esse artigo. Triste que não foi escolhido, mas feliz que mesmo assim já posso mandar todo mundo ler.