Fazendo a Serena
Faço a Serena: desapareço por um tempo e depois volto como se nada tivesse acontecido
No finado Orkut (descanse em paz, reizinho, nenhum outro nunca será igual a você) existia uma comunidade chamada "Faço a Serena" onde a descrição era: "Se você, assim como a personagem Serena Van der Woodsen de Gossip Girl, some por uns tempos e depois volta como se nada tivesse acontecido, essa comunidade é seu lugar". Não sei se eram as palavras exatas, mas a ideia geral era essa. Por anos procurei pela internet pelo menos um print dessa comunidade, mas em vão, nunca encontrei vestígio dela a não ser na minha memória. Eu estava nessa comunidade. Como muitas comunidades do Orkut ela não era bem uma comunidade para fazer amigos ou contar experiências. Ela só estava ali, meio que uma forma de informar aos outros um pequeno traço de sua personalidade. Como outras do tipo "Eu odeio segunda feira" ou "Faço xixi no ralinho do banheiro", ou ainda "Pareço metida mas sou legal". De 200 comunidades que pessoalmente eu fazia parte as que era ativa eram umas 20 no máximo.
Em Gossip Girl, a adolescente Serena Van der Woodsen desaparece sem dizer adeus para seus amigos nem informar onde estava indo. Depois de um ano incomunicável, ela volta para o Upper East Side de Nova York como se não tivesse sumido por 12 meses. Essa é a primeiríssima cena da série. O fato é, isso de "fazer a Serena" ficou marcado em mim por anos porque, apesar de numa escala muito menor e menos dramática, eu "fiz a Serena" em diversos momentos da minha vida e em lugares diferentes. Quando mudei diversas vezes de escola durante minha adolescência (foram 3 em 4 anos), quando tirei um tempo pra mim durante os anos de faculdade (1 ano e meio pra ser mais exata), quando parei com o escoteiro e depois voltei dos 12 aos 13. Os amigos? Fiz outros. Nem todo mundo entende a necessidade da gente de apenas "dar um tempo".

Nos últimos anos tenho estado numa vibe de melhorar. Tentar ser uma pessoa melhor e tudo e tal. Entendo que esse é um discurso muitas vezes cooptado por pessoas que se escondem nele para julgar os outros, mas eu tento ao máximo viver minha vidinha solitária focando apenas em mim mesma. E estou tentando melhorar porque do jeito que estava tava ruim. Tava muito ruim. Um belo dia acordei com uma dor gigante no ouvido que pensei que estava com alguma inflamação, até descobrir que era apenas um efeito colateral da minha ansiedade em pressionar minha mandíbula. Então fui pesquisar em mim mesma qual o motivo de tanta ansiedade, além dos suspeitos de sempre (capitalismo, dinheiro, etc etc). E tem funcionado bastante essa auto análise constante em que, ao me deparar com sentimentos estranhos ou atitudes irracionais, me pergunto por que agi ou me senti assim.
E já faz alguns anos que sigo Doutora Nicole no Instagram. Eu não concordo com tudo que ela posta, e talvez seja por isso que os posts tem me ajudado tanto. Ela segue essa vertente da psicanálise de autocura, o que faz bastante sentido pra mim porque não existe nenhuma outra pessoa no mundo que nos conheça melhor que nós mesmos. Só a gente e nosso inconsciente sabemos o que vivemos. Então nos últimos anos tenho procurado olhar para minha primeira infância e todos os meus traumas para saber porque eu sou assim.

E eu cheguei a conclusão freudiana que é por causa dos meus pais. Não culpa deles, tadinhos, eles fizeram o que podiam com as opções que tinham. Do lado da minha mãe, a coleção inteira dos livros do Içami Tiba não impediu que seus três filhos desenvolvessem um ou outro trauma infantil que fosse levado de forma silenciosa para a vida adulta e culminasse em crises diversas para cada um deles. Aprendi com Dra Nicole que traumas infantis podem ser quaisquer mudanças ou falas que os adultos consideram bobas mas que deixam uma grande impressão na criança. Meu pai nunca pediu desculpas. Por nada. Gosto de entreter a ideia que é esse o motivo do meu comportamento de Serena Van der Woodsen. Se você não toma conhecimento de que errou, de que abandonou, então aquele erro e o abandono não existiram, e por isso a vida segue. Mas o erro e o abandono existiram, e assim a gente vai criando espaços, vazios de existência, que se fazem necessários serem observados. "Existiu, aconteceu, o que vou fazer agora sobre isso?".
O que tenho feito é externalizar. Tenho essa tendência de me manter fechada, de não dizer pros outros o que estou sentindo. Não querer incomodar. Mas tenho externalizado, não pras pessoas se compadecerem de mim, nem pra procurarem soluções, muito menos pra se preocuparem. Mas porque depois que eu coloco pra fora, aquilo não me aflige mais. Desde pequena sou assim. Costumava ter ataques de fúria por pouca coisa, gritar, jogar e quebrar o que estivesse na minha frente. Eu saía de mim, era como se tudo ficasse vermelho, e depois só percebia o que já tinha feito. Desde que eu comecei a melhorar, trabalhar mim mesma pra ser melhor, tive esses ataques só 1 vez. Vitória. Hoje tenho extravasado na escrita, externalizado certas ideias pra expurgar elas.
Padrões de comportamento não são tão fáceis de abandonar, mas aos poucos vou mudando

Na série Décimo Reinado, o personagem Wolf (Lobo), é um humano lobo saído das histórias de contos de fadas. Por um acaso ele vai parar na Nova York do ano 2000 e se apaixona por Virginia. Ele sabe que é um vilão, e sabe que deve mudar se quer ter uma chance com ela, e assim aceita fazer uma rápida terapia. Wolf também volta para seu próprio reino com todos os livros de autoajuda possíveis, e lê todos eles. Ele sabe que precisa trabalhar em si mesmo, pôr em prática tudo que aprendeu na terapia e nos livros, para só então ter uma chance com Virginia. E apesar de sua natureza ser a de um vilão monstruoso e sanguinário, consegue superar isso com trabalho diário, percebendo sempre padrões de comportamento que deve mudar.
"Vou mostrando como sou e vou sendo como posso", é impossível mudar de uma hora pra outra e a gente faz o que está a nosso alcance. Às vezes se dá dois passos pra frente e um para trás, e às vezes, lá na frente, esse passo pra trás se torna mais um para frente. Tudo é viver e a gente tem tanto pra viver que um erro ou outro no grande esquema não tem importância. E também, é preciso saber as regras pra entender onde quebrá-las, ou então, entender os traumas para repetí-los, conscientemente, não mais num ciclo vicioso.
Mesmo sabendo agora os motivos desse meu comportamento de abandono, e de tentar não abandonar o que importa, às vezes é preciso, em prol da saúde mental. Por exemplo, parei de usar o Twitter. Por uma década aquela foi minha praça pública greco-romana, onde ia para conversar com os amigos, trocar ideias e filosofar ser millenial no fim do mundo. Mas como toda praça do pós-neo-capital-liberalismo dos anos 2020 do século XXI, ela foi vendida pra uma iniciativa privada que a transformou em algo cinzento, triste e (mais) depressivo.

Pode chamar de encosto virtual, mas toda vez que eu entrava no site me sentia mal, bem mal. Sempre aparecia na minha timeline uma discussão que me fazia sentir como um cocô. Sério. Como se eu estivesse vivendo minha vida da pior forma possível e a única solução fosse a morte. Nesse nível. Não foram os neonazis que me fizeram ficar com bode da rede, mas sim as infinitas discussões sem motivo e objetivo sobre como quem gosta de azul é uma pessoa ruim. Cometi uma decisão drástica e simplesmente parei de usar. Vício a gente corta pela raiz. Embora uma vez ou outra eu volte pra terminar alguma thread que tenha começado. O problema é que eu usava o Twitter como um local de agregação de ideias. Por lá eu postava tudo o que vinha na mente. Iria pra onde agora? Tentei o próprio Notes do Substack mas ele não funciona com memes: é um lugar sério. Não é uma praça pública cheia de doidos cada um falando um assunto e rindo alto, mas um agrupamento de intelectuais que resolvem ir pra um barzinho ou comer uma pizza depois de um seminário. São outras vibes.
Eu pedi no próprio Twitter e alguém que eu não conhecia me mandou um convite para o Bluesky. "Eu sempre dependi da bondade de estranhos", ou pelo menos da boa vontade deles em achar que eu sou legal. Assim, entrei por convite no Bluesky achando que estava na internet de 2004 e iria reviver os anos dourados e gloriosos do Orkut. Ledo engano. Talvez eu tenha chegado cedo demais no evento, e com as cadeiras vazias me senti observando as conversas tolas dos outros. Aquela não era a praça pública, nem mesmo o divertido centro de convenções que um dia foi o Orkut. Mas sim um pátio exclusivo em que as pessoas tentavam simular o que de melhor elas acreditavam existir no Twitter. Ou seja: selfies semi-nuas pra ganhar likes, correntes sem propósito, e paranóicos em busca de outros que já os haviam bloqueado. Nada disso é o que eu achava que de melhor existia no Twitter: memes aleatórios, posts sobre TV brasileira dos anos 1960 aos 2000, artigos que me faziam parar minutos para ler.
Mesmo com a decepção, não me intimidei. Continuei usando o Bluesky da forma como queria, mesmo com zero interação. Quando convidei a
para entrar, ela perguntou se valia a pena. Respondi com sinceridade, como faço com tudo na vida. Nós sempre conversamos sobre um assunto ou outro durante essa correria que se chama vida. Gosto de pensar nas nossas trocas de mensagens como cartas do começo do século XIX: a gente raramente se pergunta como está, até porque não tem necessidade, já que estamos sempre nos falando, mas já vamos direto ao assunto. E os assuntos normalmente giram em torno da nossa vida online, já que nós duas nos enveredamos por esse caminho de fazer a internet ser intrínseca a gente própria.Para ela, o problema do Bluesky era ter que recomeçar. A gente já tinha uma comunidade no Twitter, já tinha criado o nosso público ali. Para mim era justamente o contrário. Eu estava animada para começar do zero mais uma vez. As pessoas brincam que novos começos são oportunidades para se criar novas personalidades. Eu acho que essas novas personalidades, quando se é mais novo, vem naturalmente. É quase instintivo querer fazer diferente em um novo ambiente, ainda mais quando a experiência anterior não funcionou direito. Mas no momento em que estou, já nos meus 30 anos, nem se eu quisesse conseguiria criar uma nova personalidade. Posso mudar, melhorar, com base no que sou e nas referências que tenho, mas me reinventar totalmente, a essa altura, julgo ser impossível.
Mas novos começos, para mim, suprem essa necessidade de reinvenção. Mesmo continuando sendo eu mesma, novos começos me deixam animada para mostrar lados meus que ninguém conhece, enveredar por outros caminhos que não tentei ainda. Que se dane audiência, que se dane comunidade, e principalmente que se dane praças públicas com pensamentos tóxicos. Talvez o ideal seja continuar aqui mesmo, nos meus textos, onde, depois que posto, um conhecido ou outro me escreve uma mensagem transmitida por telégrafo que vem a cavalo entregada por um garoto de recados que diz: li seu texto, também me sinto assim, estamos juntos nesse mundo.
Muito bom ler esse texto. Adoro ver esses processos. Uma reflexão talvez: acho que às vezes novos começose agir de maneiras novas não é nem sobre se tornar uma nova pessoa, mas o contrário: se desemaranhar de coisas que não nos servem mais pra nos tornarmos cada vez mais nós mesmos. Pelo menos pra mim todo o meu processo de melhorar e me livrar de coisas que não quero e viver mais de acordo com o que me faz bem internamente, que reflete mais quem eu quero realmente ser.
Que montanha-russa maravilhosa de linha de raciocínio!! Até o Max Medina apareceu! ARTE.
E o "depois que posto, um conhecido ou outro me escreve uma mensagem transmitida por telégrafo que vem a cavalo entregada por um garoto de recados que diz: li seu texto, também me sinto assim, estamos juntos nesse mundo" define 100% a situação. No fim, ou nem tão no fim assim, a gente sempre volta pras palavras e longas linhas de raciocínio, tentando colocar um sentimento em palavras pra descobrir se só a gente se sente assim. Quase nunca é só a gente.