É isso que o futuro nos reserva?
Uma reflexão sobre And Just Like That, Sex and the City, Um Lugar Ao Sol, Grace e Frankie e Insecure
Eu conheço muitas pessoas que nunca assistiram Sex And The City. Conheço algumas que nem sequer ouviram falar da série. Outras que já viram um episódio ou outro e acham uma série boa, mas que não tem grandes lembranças ou influências diretas. Eu não sou uma dessas pessoas. Sex and the City fez parte da minha vida de uma forma tão efetiva que por muito tempo, quando as pessoas perguntavam como eu era, na hora me descrevia dizendo: "sou uma Miranda". Fui uma dessas pré-adolescentes superprotegidas que assistia TV à cabo demais e ficava sozinha em casa durante às tardes.
Eu sabia que não podia assistir Sex and the City aos 12 anos, principalmente por conter a palavra sexo no título, mas assistia mesmo assim. Sex and the City foi provavelmente minha primeira e grande transgressão. Lembro perfeitamente o momento em que percebi que não deveria estar assistindo aquela série à tarde no meio da semana: Miranda flertando com seu vizinho do prédio da frente através da janela… mostrando os peitos, assim, pra todo mundo ver! Foi naquele momento também que percebi que Sex and the City seria uma dessas grandes séries que me influenciariam dali para frente, juntamente com Gilmore Girls, The O.C. e, mais tarde, também Gossip Girl. Todas séries para adolescentes, exceto a série sobre mulheres de 30 e poucos anos transando por Nova York.
Essa era a grande magia de SatC e um dos motivos por ser tão popular: Carrie, Miranda, Samantha e Charlotte eram si mesmas sem medo de serem si mesmas. Talvez esse foi o maior apelo para mim. Elas eram sim, meio estranhas, largadas demais, práticas demais, confusas demais, sexuais demais. E eu queria ser exatamente como elas quando tivesse 30 e poucos, 40 anos. Carrie e companhia raramente se curvavam ao que os outros pensavam delas. Talvez Charlotte fosse a que mais se importava com a opinião alheia, mas no fim do dia ela estava lá, ponderando se daria o cu para um cara com que estava saindo a algumas semanas, ou dizendo que às vezes uma mulher só precisa de uma foda muito boa em que a sua cabeça fica batendo na cabeceira da cama enquanto o cara te maceta. Desculpe o palavreado, mas é exatamente como a nossa princesinha da Park Avenue falou.
Minha mãe nunca falou sobre sexo abertamente. Não vou dizer que tudo que sei sobre sexo aprendi com SatC, isso seria romantizar a série ao extremo, mas muito do comportamento sexual que minha mãe consideraria "depravado" me foi apresentado pela primeira vez ali. Me fez me libertar desde muito jovem de uma culpa virginal católico-cristã com a qual nunca me identifiquei, que nunca me representou. Assim que entendi, já adolescente, o que era "ser virgem" eu já não queria ser. Sexo nunca representou grandes coisas para mim. Demorou um pouco mais para me livrar do que eu considerava um fardo. Ufa, aos 22 anos não poderia mais ficar grávida do Messias, pois não era mais pura.
E estava a um passo e uma década de ter uma vida minimamente parecida com aquelas personagens. Ou pelo menos ter a mesma atitude que elas tinham ao jeito de viver a vida: independentes; sexuais; sem se importar com o julgamento dos outros (e das próprias amigas), mesmo sabendo que estariam sendo julgadas, mesmo as amigas falando esses julgamentos na cara uma da outra. Sim, Sex and the City tinha seus problemas. Carrie e as amigas eram superficiais, alienadas, despolitizadas e elitistas. Mas elas também eram livres, das amarras sociais que vieram antes delas, e das instituições sociais: sexo e filhos dentro do casamento, mulheres sendo maternais por natureza…
E então, 15 anos depois, Carrie, Miranda e Charlotte ressurgem, não mais mulheres confiantes em sua própria pele, mas inadequadas, confusas, envergonhadas, com medo de dar passos. Casamentos falidos, carreiras de décadas que nada significam. Miranda talvez seja a que mais perdeu durante esse período: seu casamento não significou nada e sua carreira parece ter iniciado ontem. Aliás, Miranda parece ter acabado de sair da adolescência, sem ter o pedantismo dos jovens adultos. Insegura onde a Miranda de Sex and the City era segura, cambaleante onde a antiga era firme. Perdeu sua essência e também seu apelo.
É claro que pessoas mudam durante a vida, tanto para melhor quanto para pior, mas Miranda ter vivido infeliz durante 15 anos e só ter mudado absolutamente todos os aspectos de sua vida durante alguns meses no início de And Just soa… vazio. Concordo que é possível que uma pessoa tenha a trajetória de Miranda, mas a forma com que essa trajetória foi exposta não comporta com o que conhecíamos da personagem.
Essa trajetória de Miranda lembra, ou espelha, a trajetória de Rebeca (Andréa Beltrão) na novela Um Lugar Ao Sol. Rebeca também vive uma crise na carreira de modelo, se sentindo inadequada e velha demais, também tentando se recolocar no mercado de uma nova forma. Mas apesar dela se sentir inadequada e nós, espectadores, conseguirmos ver esse sentimento nela, ela não demonstra essa inadequação em momento algum para os outros personagens, mesmo que eles também saibam. Rebeca não gagueja e não se coloca como obsoleta. Ao contrário, ela se põe ainda como relevante, não mais como nova, jovem, mas com uma relevância de 50 anos, a idade que tem.
Nos conectamos com a necessidade de Rebeca de tentar acompanhar os novos tempos, que parecem querer colocá-la para escanteio o tempo todo. Nos conectamos com as inseguranças que apresenta na terapia e com a tentativa de salvar seu casamento falido (que vemos na tela já estar condenado, sem chance de salvação). Conseguimos entender o envolvimento de Rebeca com uma pessoa mais nova, uma espécie de bote salva vidas de suas frustrações. Tudo escrito de forma natural, que não subestima a inteligência de ninguém: nem personagens, nem espectadores. Rebeca nos torna seus cúmplices, olhando diretamente para a câmera em diversas situações que nós (e ela) achamos ridículas, o que também nos aproxima.
Rebeca de Lícia Manzo é exatamente o que Michael Patrick King tentou fazer com que Miranda fosse, mas falhou tanto que acabou por antagonizar a própria personagem. Apesar de Miranda dizer o tempo todo que está infeliz com Steve, nós não conseguimos enxergar essa infelicidade. Afinal, acompanhamos anos de Miranda sendo justamente muito feliz com Steve, escolhendo ele dentre tantos outros para ser seu parceiro durante décadas de sua vida. Do que Miranda reclama é na verdade o que eu mesma busco para o futuro: alguém com quem conversar, com quem assistir séries nos fins de semana. Aconchego e familiaridade. Rebeca não tem com Túlio nada do que Miranda tem com Steve. Rebeca deseja (assim como eu), o que Miranda tem com Steve. Parceria, cumplicidade. Não ter que chegar aos 50 e poucos anos para só aí encontrar alguém assim.
Miranda já passou por isso. E Carrie também. Elas já passaram por todas essas situações merdas ligadas a relacionamentos aos 30, 40 anos. A ideia de envelhecer é amadurecer, se conhecer e saber filtrar todas as pessoas com quem a gente interage e deixa entrar na nossa vida para que sejam pessoas que se alinham com o que acreditamos. Entrar num relacionamento novo e abusivo com uma pessoa claramente tóxica depois de viver tanto (como Miranda e Che) é desesperançoso. Elas não precisam estar passando por tudo isso aos 50 anos de idade, de novo. Não dessa forma, não do jeito que nos é apresentado. Carrie não precisa ir a encontros fracassados em que ela termina a noite vomitando nos seus sapatos de 4 mil dólares como se fosse uma universitária durante um fim de semana de jogos intercursos. Elas têm 50 anos! Elas podem sim se dar ao luxo de dizer não para situações em que não querem estar. Elas têm conhecimento adquirido durante 50 anos e muitos, muitos, namorados para saber quem claramente apresenta um comportamento inadequado (o vulgo boy/girl/pessoalixo).
Apresentando essas situações, a série parece rir das personagens, e não com elas. Ri das situações em que essas senhoras idosas de 50 anos se colocam. Haha, olhe que ridícula essa mulher velha precisando de uma cirurgia de quadril. Haha, olhe que ridícula essa mulher tendo um orgasmo pela primeira vez em 15 anos através de uma dedada na cozinha da melhor amiga que estava ajudando enquanto a dita melhor amiga se mija toda na própria cama. Haha, olhe como somos engraçados colocando essas mulheres velhas de 50 e poucos anos em situações ridículas que na verdade não são engraçadas.
É o oposto de Grace e Frankie. Grace e Frankie são realmente mulheres idosas de 70 e 80 anos. Elas têm uma vida inteira de diferença de idade de Carrie, Miranda e principalmente de Charlotte. Mas nem Grace, nem Frankie se consideram velhas idosas. Tantas vezes assistindo a série eu desejei ser Frankie quando tiver a idade dela (ou agora mesmo). Tem um episódio no seriado todo dedicado a um incidente em que ambas Grace e Frankie travam suas costas e ficam deitadas no chão tentando levantar, ou mesmo ligar para alguém vir ajudá-las. É hilário. É hilário porque damos gargalhadas com elas. Porque a gente vê que aquela situação poderia ou pode acontecer com qualquer uma de nós no futuro. É uma situação que possivelmente já aconteceu com alguém que conhecemos.
Grace e Frankie parecem reais. São personagens tão bem escritas que parecem nossas avós, nossas mães, nossas tias. A verdade é que a idade, o tempo, passa, e a gente está vivendo. Não percebemos isso, estamos entretidas demais vivendo. E cada vez mais as pessoas que a gente considerava "velhas" não são mais tão velhas assim. Minha mãe é exatamente 35 anos mais velha que eu. Mas honestamente, na maioria das vezes ela tem muito mais ânimo que eu, para fazer tudo e qualquer coisa. E não só minha mãe. Minhas tias, um pouco mais velhas e um pouco mais novas que ela, também são iguais. São mulheres que trabalham, viajam, vão ao teatro, comentam seriados, novelas, lêem livros, ouvem podcasts, estão presentes nas redes sociais, acompanham lives no Instagram e no Youtube…
As mulheres reais que eu conheço com a idade de Carrie podem ter sim uma bursite aqui, uma cirurgia de quadril ali, uma injeção de corticóide por causa do joelho acolá, mas a vida delas com certeza não se resume a isso. E com certeza não se resume a dizerem ou insinuarem o tempo todo que estão velhas. Na verdade, nunca vi nenhuma dessas mulheres falar algo assim. Dizer que não entendem algo… Elas se adaptam. Claro, às vezes falam algo que não é lá muito correto, mas não sabem que não é mais correto, não gaguejam as palavras. E quando sabem, não repetem mais. Talvez fosse isso que tentaram fazer com Carrie, Miranda e Charlotte: mostrar a inadequação delas com o "novo" mundo. Elas não são mais as jovens moças que tinham Nova York na palma da mão. Mas na verdade elas nunca foram. Não tinha necessidade de mostrar esse grupo de mulheres sendo inadequadas, pois já eram alienadas, já não tinham noção da realidade ao seu redor, das mudanças que sempre aconteceram. Carrie reclamava o tempo todo de não poder mais fumar em lugares fechados e Miranda comentou de um jeito casual, engraçado, sobre o então prefeito Giuliani ter feito uma limpeza social nas ruas da cidade. Mas isso era relevado pois elas eram firmes em suas convicções e assim nos faziam também querer ser firmes em sermos nós mesmos.
And Just Like That é… deprimente. É deprimente porque não dá vontade da gente ter 50 anos. E 50 anos não é uma idade pavorosa como a série apresenta. Gosto de pensar que nenhuma década da vida é. É possível recomeçar aos 50 sim, mas também é possível continuar. Charlotte e Seema são as únicas personagens com que me conectei durante todos os 10 episódios. O que é supreendente para mim, pois Charlotte era a amiga com quem eu menos me importava no original. E Seema veio claramente para substituir Samantha. Mas essa substituição é algo que não me afeta, na verdade traz profundidade à vida de Carrie, mostrando que ela não parou de viver no final de SatC e voltou para AJLT, o que parece ter acontecido em todos os outros aspectos. Na vida real a gente acaba se afastando de pessoas de quem fomos muito amigos no passado. A explicação de que Samantha havia se mudado para Londres e não estava mais presente já era suficiente, sem necessidade de se alongar nesse assunto.
Essa "nova" Charlotte poderia ter saído da vida real, na medida absurda de And Just Like That, claro. Ela entende que às vezes pode ser inadequada, mas tenta se adaptar ao máximo às novas situações de sua vida, sem perder a essência e muito menos o bom humor. Não sabe muito bem como lidar com a não-binariedade de Rock, mas faz tudo o que está a seu alcance para entender essa nova situação. Em Sex and the City, Charlotte era a que mais demonstrava insegurança junto com Carrie, em contraponto com as certezas de Samantha e Miranda. Já a nova Charlotte é assertiva, segura de si, e mostra que amadureceu, que não liga mais tanto para aparências. Charlotte teve um passado, uma trajetória, que a levou a ser a Charlotte de And Just Like That, e ela tem orgulho de ser quem é, e a série nos mostra isso em todas as suas aparições.
A vida de Seema é, sim, um dos meus pesadelos: chegar aos 50 anos sem ter tido um grande amor. Mas também vejo outros desejos meus nela, como não querer se casar e viver a vida sem filhos. Seema apareceu tão pouco e de forma tão passageira que não vimos muito dela, mas do que vi eu já gostei. Se eu chegar aos 50 sem um grande amor, que pelo menos tenha metade do sucesso profissional e da confiança em si mesma que Seema tem (uma pequena prece ao universo). A tentativa de "diversidade" de And Just Like That apresentada por Seema e as outras novas personagens é… inútil. Não acrescenta em nada além de ser uma propaganda vazia feita pelos criadores da série, que afirmaram constantemente estar "consertando" a falta de representatividade do original. Também não era necessário. Já existem outras séries que fizeram isso de forma muito melhor, criadas por pessoas negras.
Em específico Insecure, que atualiza as questões de Sex and the City com um elenco negro morando em Los Angeles. Issa e Molly levam uma vida parecida com a do quarteto de SatC, mas com questões específicas de raça, saúde mental, e gênero que nenhum homem branco de meia idade sequer pensaria em abordar. Insecure talvez seja a herdeira mais natural de Sex and the City, atualizando os assuntos sexuais de onde Carrie parou, sem perder a relevância nas questões de gênero e sem deixar de ter personagens julgando uns aos outros o tempo todo (inclusive esse é um ponto importante de atrito entre eles).
Seria Miranda Hobbes a protagonista de And Just Like That e por isso abominamos suas escolhas assim como fazíamos com Carrie em SatC? [Essa teoria não é minha, e sim da Any Valette] Ela certamente parece ter mais tempo de tela, mais catarses e momentos de clareza, assim como mais enredo e resoluções (embora seu possível alcoolismo tenha sido magicamente curado). Infelizmente, a profundidade que a série tem com o luto de Carrie é também o que faz com que ela fique apagada como protagonista; com uma história mais lenta e sensível que as demais personagens. Temos alguns bons momentos com a personagem, principalmente nos episódios finais, e outros bons que não fazem muito sentido na trama, a não ser para pontuar mais uma vez que Carrie envelheceu. O momento da visita a um cirurgião plástico, inclusive, é idêntico a uma cena de Rebeca. Um Lugar Ao Sol está para And Just Like That assim como Mulheres Apaixonadas estava para Sex and the City.
Citei Um Lugar Ao Sol comparando Rebeca e Miranda, mas a novela também não trata suas personagens tão bem assim e sofre do mal de nos apresentar vidas de mulheres de 50 anos completamente frustradas, pelo menos no início. Tanto Rebeca quanto sua prima e melhor amiga Ilana (Mariana Lima) iniciam a trama com casamentos falidos. Júlia (Denise Fraga), outra personagem de 50, tem uma "Síndrome de Peter Pan" misturada com um alcoolismo destrutivo. É um pessimismo "cinquentinha" que nos envolve, oposto ao sentimento trazido pela minissérie (Cinquentinha) e pelas novelas de Manoel Carlos, mostrando Helenas de 40 e 50 cheias de si, se envolvendo com garotões com metade de suas idades sem se importar com a opinião alheia. Rebeca e Ilana, pelo menos, conseguem ir se modificando ao longo da trama e tomando as rédeas das próprias vidas.
Eu sei que não é o que está sendo mostrado na tela hoje que o futuro me reserva. Mas isso não me impede de ficar um tanto chateada com a falta de esperança, com o derrotismo passado por essas histórias. Talvez seja apenas algo geracional, mas eu preciso de mais. Eu preciso de mais Nancy Meyers e Martha Kauffmans, de comédias românticas e romances no geral que não subestimem e desprezem o prazer de envelhecer, apesar de se envelhecer.