Mesmo sem nunca ter assistido The Way We Were (Nosso Amor do Passado no Brasil) eu sabia exatamente qual era o conteúdo do filme e seu final. Eu sabia até falas inteiras, mesmo não sendo um filme tão conhecido, nem mesmo muito comentado. A parte o protagonismo de Barbra Streisand, não tem nada demais em The Way We Were: é um desses filmes românticos que passaria aos sábados a tarde em algum canal da TV aberta com uma dublagem Herbertiristians (Herbert Richers). Barbra figurou em aproximadamente uma dúzia de filmes e, sendo sincera, apenas metade deles são realmente bons. Impossível saber objetivamente se The Way We Were se encaixa nessa categoria quando existe tanta emoção em torno dele.
O filme é citado no último episódio da segunda temporada de Sex and the City (eu juro que não falo só disso, prometo, mas nesse texto vai ser importante), talvez um dos melhores episódios da série e um dos melhores episódios de seriados no geral. Não é preciso ter visto o filme para entender a referência dele na vida de Carrie porque tem uma cena em que as três amigas explicam o enredo para Samantha, que assim como quem assiste, nunca teve contato com Katie e Hubbell, os personagens principais. Lorelai Gilmore também fala do filme algumas vezes em Gilmore Girls, talvez o momento mais impactante quando ela emula Katie e telefona para Luke depois de terem terminado. Não lembro se Fran Fine faz alguma referência ao filme em específico em The Nanny, mas sei que ela é devota de Barbra Streisand, com foco em Yentl (um Noite de Reis judeu), filme de 1983 que Barbra lutou por 15 anos para ser feito e o qual a própria dirigiu.
The Way We Were não é dirigido por Barbra Streisand, mas é um filme tão polêmico nos bastidores quanto os outros que dirigiu. Não por Barbra, mas por discordâncias criativas entre Arthur Laurents, o roteirista e criador da obra, e o diretor Sydney Pollack. Para Laurents o filme de 1973 não era político o bastante quanto sua peça original… embora a trama se passe entre os anos de 1937 e 1950 (e tantos) e traga muitas referências políticas para um filme de romance. Katie, uma moça judia comunista, e Hubbell, um típico "garoto americano", se conhecem na universidade. Apesar de não terem nada em comum, os dois compartilham um interesse: a escrita. Contra todas as expectativas, Hubbell, além de bom atleta, é um ótimo escritor; e Katie, também contra expectativas, não é uma escritora tão boa assim, mas sim uma ótima ativista. Passam alguns anos e no final da Segunda Guerra eles se encontram novamente em Nova York. Katie agora trabalha numa rádio e Hubbell está no exército, atuando em Washington (que fica a algumas horas de NY) e voltando a se integrar na vida civil. Os dois começam um relacionamento com indas e vindas, durando do final da guerra a uma mudança do casal para Los Angeles onde Hubbell vai trabalhar como roteirista, no início dos anos 50. Os dois são muito diferentes: Hubbell, a quem tudo vem tão fácil, não entende a paixão pela luta política de Katie, o que acaba por separá-los definitivamente.
Além do enredo, Katie Morosky é, acima de qualquer estereótipo, uma "garota estranha" que não se encaixa na vida de Hubbell e nos lugares que ele frequenta, mesmo tentando de tudo pelo amor dele para ficarem juntos. A atração de Hubbell por Katie funciona exatamente por ela ser essa "garota estranha", diferente do mundo dele, com uma paixão feroz em oposição à apatia e alienação de seus amigos.
"Eu fui fácil demais para você… Não digo sexualmente, digo… fácil, como tudo é fácil pra você"
"I was too easy for you … I don't mean sexually, I mean … easy, like everything is for you"
Na primeira vez que Katie e Hubbell terminam, ele a procura na rádio em que ela trabalha para devolver a chave do apartamento e eles têm uma conversa sobre o relacionamento. Katie então diz que ela foi fácil demais para Hubbell, ao que ele responde "Fácil? Você acha que você é fácil? Comparado com o quê? A Guerra dos Cem Anos?". Hubbell sempre viu Katie como uma pessoa difícil de conviver, que não cede em seus princípios, que não tolera comportamentos que concebe por "inadequados". Ela é, para Hubble, intransigente, e é esse o motivo da primeira grande briga deles: os amigos de Hubbell faziam piada com Eleanor Roosevelt comentando sobre a morte do seu marido, o presidente dos EUA, e Katie fica brava. A diferença de comportamento dela e dos amigos de Hubbell escancara o quanto a política altera a vida dela, uma garota de classe média, e também o quanto as mudanças políticas não afetam em nada a classe alta. Além disso, Katie se mostra deslocada do grupo de amigos de Hubbell, não disposta a fingir para se encaixar ali.
E para Katie… ela havia se feito fácil para Hubbell. Ele reclamava de algo que não era realidade. Katie cedeu tanto a Hubbell que havia quase se transformado em outra pessoa, uma pessoa mais fácil. É por isso que diz que foi "fácil" para ele: se diminuiu tanto para que ele a entendesse, e no fim mesmo assim ele não a entendeu. Katie se fez menos para conviver com Hubbell, para ter ele em sua vida, mas esse menos ainda assim era "demais" para ele.
E para Hubbell… ele diz que admira que ela seja assim, ao que Katie responde: "até certo ponto!". Katie é interessante e empolgante, desde que não crie desordem dentro do mundo perfeito e tedioso dele, desde que não o faça pensar um pouco demais, se importar com coisas que "não lhe dizem respeito". Desde que Hubbell não tenha que trabalhar demais pelo que quer. Katie não veio tão fácil quanto ela acreditou para ele porque mesmo ela se fazendo mais fácil para Hubbell, ela realmente não era fácil para ele, já que ele estava acostumado a ter tudo.
No fim da primeira temporada de Sex and the City Big se surpreende com uma crise de raiva de Carrie por ele ir à Paris por seis meses sem a avisar. Qualquer pessoa em um relacionamento sério ficaria, mas Big não entende a crise de Carrie já que… ela se fez fácil para ele. Não no sentido sexual, mas Carrie a todo o momento se moldava, tentava bancar a "garota legal", fingir que não se importava com as inseguranças que Big a fazia sentir, se fazendo mais "fácil" para ele a entender, para que ele continuasse em sua vida. Big era sim abusivo emocionalmente, sem se importar com o que Carrie sentia, mas também sem saber bem o que ela sentia porque ela não se expressava para ele com medo de que ele terminasse o relacionamento. Assim como Katie, Carrie aceitou o que lhe ofereciam, mesmo que fossem migalhas, mesmo que não fosse para "toda" ela, e só a parte que se diminuía em presença de Hubbell/Big.
Quantas vezes nos diminuímos em situações e lugares para nos adequarmos ao que os outros querem ou esperam que sejamos? E quando finalmente nos mostramos por inteiro, em algum momento crucial (as piadas em torno da morte de um ídolo ou o anúncio de uma mudança da qual não fazemos parte), acabam se surpreendendo, até mesmo temendo. Ambos Hubbell e Big terminaram com suas namoradas depois de namoros conturbados e casaram com outras, garotas mais "simples" que, se não conseguiam entender, pelo menos faziam parte de seus mundos, que não os faziam pensar além do que conheciam.
"Você é o melhor amigo que eu tenho! E… me ajudaria tanto se você viesse e me ajudasse nesse período… [...] Eu preciso falar com o meu melhor amigo sobre alguém que nós conhecemos."
"You are the best friend I ever had! And… it would help me so much if you come over and help me through tide… [...] I need to talk to my best friend about someone we both know."

Depois de devolver a chave e terminarem, Katie fica realmente mal por estar sem Hubbell, e então telefona para o apartamento do amigo onde ele está ficando e entrega o que é o melhor monólogo do filme, e realmente um dos monólogos românticos mais lindos já escritos:
"Sou eu… Hubbell… não desligue… olha, Hubbell… é meio peculiar… eu sei que eu não tenho que me desculpar pelo que disse… [...] de qualquer forma, o que é peculiar é que… É mais um pedido, um favor… veja bem, eu não consigo dormir, Hubbell, e, ia me ajudar muito se você pudesse… bem, se eu tivesse alguém com quem conversar, sabe, se eu tivesse um… tivesse um melhor amigo ou algo assim para conversar sobre isso. Só que você é meu melhor amigo. Isso não é bobo? Tão bobo! Você é o melhor amigo que eu tenho! E… me ajudaria tanto se você viesse e me ajudasse nesse período… [...] Eu preciso falar com o meu melhor amigo sobre alguém que nós conhecemos. Então, Hubbell, por favor, venha logo."
"It's me… Hubble… don't go a way… listen, Hubble… this is kind of peculiar… I know that I don't have to apologize for what I said… [...] anyway, the peculiar thing is… It's really a request, a favor… see, I can't sleep, Hubble, and, it would help me so much if you could… well, if I had someone to talk to, you know, if I had a… I had a best friend or something to talk about it with. Only you are my best friend. Isn't that dumb? So dumb! You are the best friend I ever had! And… it would help me so much if you come over and help me through tide… [...] I need to talk to my best friend about someone we both know. So, Hubble, please, come right away."
Enquanto Hubbell era mostrado durante o filme sempre cercado de muitos amigos e pessoas de confiança, ao longo da trama Katie tem apenas um ou outro confidente que não é ligado a ele (no começo do filme seu colega de faculdade e trabalho; no início do namoro com Hubbell ninguém; após se casarem e ir para Los Angeles, vira muito amiga da agente de Hubbell; e no final, sem Hubbell, volta aos amigos ativistas). Como ela afirma, Hubbell é sim, o melhor amigo de Katie… seu único amigo! Ainda mais durante o relacionamento. Quando se mudam para Los Angeles, Katie convive apenas com pessoas através de Hubbell. Por um tempo ela até deixa o ativismo político de lado, mas no fim seus desejos falam mais alto. Katie faz amizade com a agente de Hubbell e se acerta com o JJ, melhor amigo do marido. Pessoas que acabam dando mais valor a ela como ela verdadeiramente é que o próprio Hubbell. JJ chega a afirmar que terminar seu próprio casamento não era lá grandes coisas pois ele não estaria "perdendo uma Katie".
Isolada e com poucos aliados só dela dentro do relacionamento com Hubbell, é claro que ia sentir que ele era seu maior e melhor amigo. Mas a verdade é que isso não era recíproco. Ao longo da trama fica bem claro que Katie colocava Hubbell em um papel na vida dela que ele não colocava na dele. Katie era só mais uma garota com quem Hubbell se envolvia, e não sua melhor amiga. Me impressiona que Hubbell e Katie acabam realmente por se casar, pois não consigo visualizar Hubbell gostando de Katie o suficiente para isso. Mas mesmo casados, parece que Hubbell não leva nem Katie, nem o casamento, a sério. Tanto que o que os afasta é justamente a personalidade dela, que ele já conhecia desde o começo.
E assim como Hubbell, Big também nunca considerou Carrie para se casar (e quando digo Big, quero dizer como o personagem foi concebido no início da série, já que a autora Candace Bushnell se baseou em um caso que teve na vida real). Eram fortes as evidências, assim como as evidências de que o caso entre Hubbell e Katie iria terminar em algum momento. Porque ele não a respeitava por inteiro, mas sim a admirava até certo ponto.
Talvez o único exemplo de "garota estranha" que tenha dado "certo" ao citar The Way We Were seja Lorelai em Gilmore Girls (Tal Mãe Tal Filha). Porém, embora ela faça uma analogia entre sua relação com Luke e a de Katie e Hubbell, na verdade quem é o Hubbell da vida de Lorelai é Christopher, o pai de Rory. Igualmente um "garoto americano", em que tudo vem fácil na sua vida, também abandonando a filha para ser criada por uma mulher que, sim, talvez ele ame, mas que ele não entende. Lorelai não tem o "fenótipo", o estereótipo da "garota estranha": seu nariz é pequeno, nada proeminente, seu cabelo é liso, não espalhafatoso, e o consenso geral sobre Lauren Graham, a atriz que interpreta a personagem, é que ela é classicamente atraente. Lorelai também vem de uma família anglicana, branca e muito rica, o famoso "sobrenome de família" (em inglês "old money"). Ou como dizemos aqui em São Paulo: quatrocentões. Na teoria, Lorelai seria a perfeita WASP (White, Anglo-Saxon, Prostestant/Branco, Anglo-Saxão, Protestante), o par perfeito de Hubbell, a quem Katie se compara e a faz sentir inadequada.
Mas ser a "garota estranha" não tem muito a ver com seu passado nem de onde se vem. É mais sobre um conjunto de atitudes e comportamentos que te fazem ser "indesejável" em certos ambientes. E com esse "indesejo", também vem o sentimento de deslocamento, de inadequação. Antes mesmo de Lorelai engravidar na adolescência, ela já tinha comportamentos que não se encaixavam junto a seus colegas, as pessoas ao seu redor, e principalmente a sua família. Junto ao controle dos pais, isso faz com que ela fuja de casa para criar a filha do jeito que quer. Talvez a característica que torna Lorelai uma "garota estranha" seja impor sua vontade e não se vergar a pressão do ambiente em que se está. Nesse ponto Lorelai e Katie não são apenas parecidas, mas idênticas, e é por isso que Lorelai faz tantas referências a The Way We Were, já que se vê em Katie.
"Eu sei que eu sou atraente, de certo modo… mas… mas eu não sou atraente de um… eu não sou atraente do jeito certo… Sou? Quer dizer… Eu não tenho o estilo certo… para você… Tenho?... Seja meu amigo."
"Não, você não tem o estilo certo."
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"I know I'm attractive, sort of… but… I'm not attractive in the… I'm not attractive in the right way… Am I? I mean… I don't have the right style… for you… Do I?... Be my friend."
"No, you don't have the right style."

Depois do telefonema, Hubbell atende o pedido de Katie e vai até ela no apartamento para conversarem sobre o relacionamento. Ela quer entender o que tem de tão diferente para que não seja amada por ele. Katie quer saber o que mais pode mudar para ser a mulher com quem Hubbell deseja casar. E então ele cede e eles voltam, com a promessa de Katie que ela irá tentar "domar" suas opiniões, as quais ela declara alto demais, com opiniões políticas perigosas para o período da Guerra Fria.
Katie, que já havia mudado seu cabelo antes de reencontrar Hubbell (de cacheado para alisado), começa a se diminuir ainda mais para se encaixar na vida e na nova carreira de Hubbell. De ativista passa a ser uma dona de casa que escreve sinopses comerciais de livros e filmes. Depois de um tempo em Los Angeles parece que Katie começa a se encontrar novamente, mas em Nova York o cabelo passado a ferro é alegoria para essa fase em que ela tenta se encaixar no mundo perfeito de Hubbell. Katie já tinha o cabelo alisado antes de reencontrar Hubbell, é verdade, mas não parecia ser algo com tanta evidência em sua vida. Mas quando reencontra Hubbell e começa a frequentar as reuniões com os amigos dele, tem que justificar constantemente seu cabelo alisado, já que a questionam o tempo todo sobre essa diferença de aparência. Apesar de tentar se encaixar, Katie é lembrada que aquele não é realmente seu lugar, assim como seu cabelo não é realmente liso, ela tem que se esforçar, se submeter, para ter a mesma aparência lisa das garotas ao redor de Hubbell.
"Ele é passado a ferro."
"Você passa seu cabelo a ferro?"
"I have it ironed."
"You have your hair ironed?"
[Katie e Hubbell após se reencontrarem]
"É meu cabelo, ele é passado a ferro… no Harlem. Eu tenho amigos no Harlem."
"It's my hair, I have it ironed… in Harlem. I actually have friends in Harlem."
[Katie para Carol Ann]
Após ser questionada sobre alisar seu cabelo por Carol Ann, a ex de Hubbell da faculdade (e com quem mais tarde JJ se casa e Hubbell trai Katie no fim do casamento), Katie afirma que na verdade ela tem amigos no Harlem. É uma forma de defesa. Apesar de se justificar para Carol Ann, Katie faz questão de dizer que não está completamente sozinha. Para além daquele apartamento pomposo em que ela não se encaixa, existe um mundo todo ao qual ela pertence, em que a entendem e onde não precisa justificar o tempo todo a decisão de ter alisado o cabelo, ou ter o cabelo crespo, ou ter opiniões ditas alto demais.
Assim como Katie, a própria Barbra Streisand nunca se oprimiu pela opinião alheia sobre ela. Quando perguntada por Barbara Walters em 1985 porque ela nunca operou o nariz, Barbra respondeu que não confiava nos médicos e que achava que seu nariz combinava com seu rosto (17:38). Mas que já havia pensado muito nisso. Um dos primeiros papéis de Barbra foi como protagonista na cinebiografia da comediante Fanny Brice, Funny Girl (A Garota Genial, 1968). Fanny foi uma das primeiras celebridades a ter sua rinoplastia mostrada na mídia, um jornal em 1923, cansada de ser ridicularizada por seu "nariz judeu", o mesmo tipo de nariz que faria Barbra famosa 50 anos depois. A cirurgia plástica de adequação a um padrão de beleza não é recente, mas talvez esteja cada vez mais popular hoje.
Em 2019 Jia Tolentino, provavelmente uma das maiores pensadoras socioculturais da atualidade, publicou um texto na revista New Yorker intitulado "A Era do Rosto de Instagram" ("The Age of Instagram Face"). Ali ela questionava o aumento das celebridades no Instagram com o mesmo estilo de rosto, todas parecidas com as Kardashians, que também se parecem cirurgicamente com Kim. As características são: nariz pequeno e arrebitado, maçãs do rosto predominantes, quase nenhuma bochecha, testas pequenas, lábios cheios. E uma cor levemente dourada, etnicamente ambígua, nunca negra ou branca "demais", sem olheiras fundas. Dentes brancos e perfeitamente alinhados. Cabelos lisos, com ondas que flutuam…
O rosto de Instagram parece ter sido forjado em barro, uma das entrevistadas de Jia diz… ou melhor, forjado em filtros. E para muitos forjado em botox e ácido hialurônico. Jia não considera a harmonização facial, que junta os dois procedimentos e ficou ainda mais popular durante a pandemia, depois que o artigo saiu, mas que contribui para essa sensação que todo mundo está com a mesma cara. Lindos, mas com o mesmo rosto, o rosto de Instagram. Não só isso, mas as pessoas que já tem uma beleza padrão, e tem dinheiro para procedimentos, fazem esses procedimentos estéticos para ficar mais ainda no padrão.
E, claro, quem não tem e nunca teve essa beleza padrão vai se sentindo cada vez mais deslocado. Com um estilo que, nas palavra de Katie, "não é o certo". O problema é que esse estilo que não é o certo não está mais restrito aos tipos "amigos de Hubbell", não é apenas mais o padrão de um grupo seleto. Ele invade nossas vidas pelas redes sociais, nos bombardeia nas propagandas que recebemos o tempo todo, está ali no stories da influencer que você acha linda e hoje acabou de mostrar a nova rinoplastia ou outro procedimento parecido (diminuiu a testa, tirou a papada, as bochechas, etc). E é sempre de uma hora para outra, sem aviso e sem compromissos. De repente você está seguindo mais uma pessoa com O Rosto de Instagram.
Então você se pergunta se seu nariz é caído demais, será que você não ficaria mais bonita, mais atraente, se arrebitasse ele um pouquinho? Só alguns milímetros. Você começa a procurar sobre rinoplastias. Olha só essa nova técnica que coloca fios dentro do nariz e puxa ele um pouco, seria o ideal… os fios ficam ali dentro pra sempre, mas quem se importa quando o exterior vai ficar bonito? E as bochechas? Você não é bochechuda demais? As maçãs do rosto com certeza vão ter que ser mexidas, você não tem nada ali! A testa pelo menos você já se acostumou. A Rihanna é testuda, e está firme e forte igual. Será? Será que a Rihanna diminuiu a testa? Rihanna Google pesquisar. Ufa, Rihanna continua testuda, então a testa está ok, você já fez as pazes com ela, pra que pensar nisso…
Um looping constante de se sentir inadequado. Esse sentimento parece ter piorado na pandemia, quando a gente ficou constantemente ligado às telas, sem ver pessoas reais. Os influencers ficaram mais bonitos e com rostos mais parecidos e nós meros mortais nos sentimentos cada vez mais longe do padrão desejado. E os mortais também começaram a ficar parecidos com esses influencers, e agora olhamos para um mar de gente parecida e pensamos o quanto seria bom nos parecer com eles, pelo menos para ser mais aceito, para não destoar tanto.
E esse destoar é sutil e cruel. Quem destoa é corajosa, é exótica, é estranha (olha a palavra aí de novo!). É segregador. Teve um momento que não aguentei mais. Não, não fiz plástica alguma, apenas… parei de seguir esses influencers. Não conseguia acreditar que era uma solução tão simples mas que melhorou meu sentimento de inadequação quase que totalmente dentro das redes. Comecei a olhar para outros influencers que entregavam do outro lado da tela vidas mais parecidas com a minha. Pessoas reais, com vidas reais, que não tem o mesmo rosto de Bruna Marquezine e Camila Coutinho, com uma vida normal, que não injetam botox a cada 6 meses.
[Adendo: pessoalmente não sou contra procedimentos estéticos; eu mesma quero fazer um lifting assim que puder. Mas tem alguma coisa errada, alguma coisa a se pensar, quando esses procedimentos viram um padrão tão minucioso, tão regulado, que todo mundo acaba parecido e quem não se encaixa no padrão é tido como "feio".]
Em 2014 eu li um artigo que mudou minha vida e meu entendimento sobre mim mesma. Sem exageros ou hipérboles. O artigo se chamava "Por Que Eu Não Uso Maquiagem" ("Why I Don't Wear Makeup"), escrito por Leandra Medine num site chamado Man Repeller (Repelente de Homem). Imediatamente eu me vi ali, já que também não usava maquiagem. Não só não usava maquiagem como não gostava de usar. Ainda não gosto. No artigo Leandra não se coloca de forma superior mas diz que se sente bem sem maquiagem e não vê motivo para usá-la, mesmo com pessoas desconhecidas a chamando de "feia pra caralho" num email que não deveria ter visto mas chegou até ela por acidente. A opinião dos outros sobre o rosto de Leandra não importa para ela mais do que a própria opinião. E ela acha seu rosto ok. Assim como Barbra com seu nariz.
O Repelente de Homem surgiu, segundo o livro de Leandra, "Man Repeller" (sim, esse é também o nome do livro que, claro, sou dona orgulhosa de um exemplar), quando ela estava conversando sobre moda e estilo com uma amiga no metrô e perguntou para alguns caras que estavam ali perto o que eles achavam da roupa que ela estava vestido. Se a roupa repelia eles. Os caras pensaram por um bom tempo e responderam em seguida que… não… mas depois começaram a questionar as escolhas de Leandra. "Você está vestindo jeans demais, né?", "Por que você usa dois relógios?", etc. Não que não era um estilo atraente para eles, mas eles não entendiam o estilo. Não era o estilo certo. A primeira vez que li aquilo soltei um "Ahá!". Então era isso. Eu também era uma "repelente de homem", porque eu sempre amei meu estilo, como eu me vestia, mas não era algo atraente ao olhar masculino. E os momentos da minha vida em que me afastei do meu estilo tentando emular o que seria o padrão, foram os momentos em que fui mais infeliz.
"[...] nós estamos sozinhas porque a moda é um chamado à individualidade."
[Man Repeller - a divertida moda que espanta os homens, Leandra Medine, página 166]
Sim, os anos 2000 foram um período estranho em que o jeito de se vestir era um padrão levado muito mais em consideração do que qualquer outro. Talvez só não mais que o formato do seu corpo. Se você era gorda demais ou magra demais: fora do padrão! Cabelos cacheados ou crespos, usava óculos: fora do padrão! Se vestia de um jeito "estranho"? Fora do padrão! O estilo pelo menos mudou e é por isso que o Man Repeller, tanto o blog quanto o termo, não fazem sentido hoje em dia. Naquela época nosso mundo era muito pequeno. O mundo de Leandra era os bairros que ela transitava em Nova York, e meu mundo a minha cidade natal. E o mundo de tantas outras "garotas estranhas" que se sentiam igualmente inadequadas se abria apenas pelo que estava na televisão, e o padrão da televisão era apenas um só. E então, com a internet, pudemos conhecer outras pessoas que também se sentiam assim e perceber que, bem, essa inadequação não era o que parecia ser. Existia um mundo todo de pessoas inadequadas e estranhas lá fora.
Não acho que as garotas "estranhas" nasçam se sentindo inadequadas, mas que existe um momento específico em que percebemos que a gente não se encaixa direito ali, como a Carrie no baile da escola (dessa vez a do Stephen King, não a de Sex and the City). Meu momento também foi na festa de formatura do colegial, mas claro bem menos dramático que um balde de sangue caindo sobre mim, bem mais sutil. Assim como a Katie, a gente não percebe de cara que estamos desconfortáveis ali e vamos tentando nos adequar às situações. Eu também alisei meu cabelo pra não me destacar tanto, pra me encaixar na turma. Usava só sutiãs de bojo porque uma vez uma garota mais legal que eu disse que era horroroso, esteticamente, quando o bico do seio aparecia na roupa. Eu fiz de tudo para não ser estranha, e achava que estava tendo sucesso nesse empreendorismo. Mas é impossível tirar a estranheza da garota com opiniões demais. Esse jeito de dizer o que pensava, de ser dura demais, de dar a cara a tapa, nunca me abandonou. E eu nunca quis que ele me abandonasse. A gente tenta se adequar exteriormente, mas é impossível mudar nossa essência. E eu não percebi que mesmo eu fazendo tudo para mudar por fora o que aparecia mesmo era quem eu era por dentro. E eu gostava e gosto de quem sou por dentro, de verdade.
Mas acho que, embora tenha gente que goste de mim assim, tem outros que não me entendem, não gostam. E agora está tudo bem, mas na época, na adolescência, eu achava que se mudasse tudo em mim as pessoas iam gostar de mim. As pessoas não, os garotos. Ia me tornar mais atraente. Só que naquela época não adiantava você ser magra, branca e de cabelo liso. Se eu não tinha a mínima chance fico imaginando outras garotas. Você tinha também que ser bonita, ser gostosa, principalmente ser gostosa. E não ter muitas opiniões aparentes, tinha que concordar com o que os garotos falavam, não podia ir contra eles, não podia mostrar muita coisa contrária. Ser feminista demais, gostar de coisas de garota demais…
Foi só depois do incidente da formatura que percebi que aquela roupa que estava vestindo pinicava demais em mim. Podia até servir, mas era desconfortável, feia, não combinava comigo. Levei ainda muitos e muitos anos para me despir de todas as peças. Quase uma década para reencontrar quem eu era na infância e construir uma versão madura daquela pessoa; com opiniões demais, que às vezes fala alto demais, e fala demais, e que às vezes passa dias só falando algumas palavras.
(O incidente não foi nada demais, mas vou contar pra vocês não ficarem fantasiando muito: a entrada seria um garoto junto com uma garota e o garoto que ia comigo e outra menina se recusou a entrar comigo. Depois, não relacionado a isso, acho, meus amigos da escola me deixaram de lado a festa toda e passei com outros amigos.)
"Eu não quero me comportar, eu não ligo para me comportar!"
"I don't want to behave myself, I don't care about behaving myself!"

Rachel Shukert, criadora da série da Clube das Babás, uma verdadeira ode à individualidade feminina pré-adolescente, deu uma entrevista recentemente comentando sobre o cancelamento do seriado em sua segunda temporada pela Netflix. O plano original era ter pelo menos mais uma temporada, e o cancelamento pegou todo mundo de surpresa porque a série estava indo bem. Em certo momento Rachel comenta que a série era importante porque apostava na narrativa de cada personagem, que eram marcadamente bem diferentes entre si.
"É um período fácil para garotas se definirem exclusivamente por como elas são vistas por outras pessoas e aí você só consegue seu senso de si mesma de volta aos 35."
"It’s a really easy time for girls to define themselves solely by how they’re seen by other people and then you don’t get your sense of self back until you’re 35."
Eu acho que o sentimento de inadequação também tem um pouco a ver com isso. Eu não me sinto mais tão inadequada, mas esse sentimento só passou nesses últimos anos, quando comecei a me reencontrar em mim mesma. Aos 30… é exatamente o que Rachel disse na entrevista, e exatamente o processo de se conhecer inadequada, e depois não ligar para isso.
Fran Fine e Fran Drescher (criatura e criadora), se fundem e se confundem em The Nanny, assim como a admiração em tela e fora dela por Barbra Streisand. E personagem e pessoa real, por compartilharem tanto do mesmo passado, são inspiradoras dentro da sua inadequação que na verdade é adequada. Fran faz todos ao seu redor, dentro e fora das telas se adequar a ela, e por isso é tão diferente de todas as outras personagens inspiradas ou que referenciam Katie. Mesmo em um ambiente que a rejeita, ela faz com que os outros se adequem a ela, não o oposto.
Tem um episódio de The Nanny, depois que ela começa a namorar Maxwell, em que as outras mulheres da sociedade de Nova York fazem Fran se sentir inadequada. Ela tenta se encaixar as expectativas dos outros, mas, claro, não dura muito. Fran Fine e Fran Drescher são, sem desculpas e sem temores, e com razão, orgulhosas de si mesmas. Elas têm um senso de si próprias forte demais, praticamente inabalável.
Barbra Streisand é reverenciada o tempo todo em The Nanny, às vezes de forma obsessiva, às vezes de um jeito meio engraçado. Mas é impossível negar o impacto de Barbra em Fran, a quem ela chama o tempo todo de "deus". Se Fran Fine inspirou tantas outras e Barbra inspirou Fran Drescher, então é possível afirmar que o impacto de Barbra Streisand é maior que de muitos outros ícones da música e do cinema.
Barbra fez questão de sempre ser orgulhosamente si mesma, com suas qualidades e seus defeitos, e assim permitiu que muitas outras de nós também pudéssemos ser orgulhosamente nós mesmas. Mesmo quando nem se tem conhecimento da existência de Barbra, e muito menos de seu impacto na vida de tantas pessoas.